segunda-feira, 30 de julho de 2012

O retorno dos filósofos comunistas



Empobrecimento, desigualdade e declínio das velhas democracias,
estão levando pensadores a dialogar com a face anti-estatista,
radical e libertária do marxismo.

Por Santiago Zabala, na Al Jazeera | Tradução: Vila Vudu

Ler Marx e escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos importantes filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa alguma coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono [nórdico] de 2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.

Por mais que essa ressurreição [2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos EUA, esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no início dos anos 1990s, Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história” inventados por Francis Fukuyama.

Contra as previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que a história já caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômicos e geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.

O movimento acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris [6], Berlin [7] e New York [8] (com participação de milhares de professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista está no centro de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos filósofos comunistas tão ativos.

A ressurgência do marxismo

Evidentemente, nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa para partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados; é proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global.

A correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das tradições filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal, a política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a realidade e a propor alternativas.

Foi o que aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega de todos os campos da atividade humana e de uma industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a política, em vez de resistir à industrialização do homem e da vida humana, limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram devastadoras, como todos já sabemos.

Hoje, as coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais do início do século 21 serviu para mostrar que nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores ou mais claras que hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em favelas urbanas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já não há remédio possível.

Por isso tudo, relatório recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa, além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos associados ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência do marxismo é consequência direta da aniquilação das condições de existência humana resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.

O que é “comunismo”?

Por mais que a palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao longo da história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do passado e é associada a um sistema político cujos componentes culturais, sociais e econômicos são todos controlados pelo estado.

Por mais que talvez seja o caso na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para a maioria dos filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado, é efeito de propaganda maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse apenas isso.

Como diz Zizek, o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas por causa do fracasso das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu quebrar as limitações que o estado impôs ao comunismo, porque não se substituíram as formas de organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas de auto-organização social.”

O comunismo, como ideário antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor hipótese, ideia e guia  para os movimentos políticos libertários antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999), Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).

Por mais que esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes entre si (contra a globalização econômica desigualitária, contra a privatização da água, contra políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.

Como o demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo deixou para trás todos os que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras, produzindo novos comunistas.

Comunismo e democracia

Em resumo, enquanto Negri e Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela, Bolívia e outros países latino-americanos.[16]

Se esses líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir políticas comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem chegado ao mundo político armados por fortes conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas fraquezas.

Diferente da agenda pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado “hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do de-crescimento, mas também a causa da decentralização do sistema burocrático estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos independentes locais, que estimulam o envolvimento das comunidades.

Que ninguém se surpreenda se muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e políticas de destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa [19] que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder também pelas vias formais da democracia.
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* Santiago Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats, ICREA[1], da Universidade de Barcelona. É autor, dentre outros trabalhos, de The Hermeneutic Nature of Analytic Philosophy (2008), The Remains of Being (2009), e, mais recentemente, com G. Vattimo, Hermeneutic Communism (2011), todos publicados pela Columbia University Press.

Notas:

[1] http://www.icrea.cat/Web/Links.aspx
[2] http://50.56.48.50/article/new-communism-resurrecting-utopian-delusion
[3]http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/oct/08/communism-university-workplace-occupations?INTCMP=ILCNETTXT3487
[4] www. routledge. com/ books/ details/ 9780415389570/
[5] http://www.guardian.co.uk/uk/2009/mar/12/philosophy
[6] http://marxau21.blogspot.com.es/2009/12/puissances-du-communisme.html
[7]http://www.volksbuehne.berlin.de/praxis/en/idee_des_kommunismus__philosophie_und_kunst/?id_datum=2533
[8] http://www.versobooks.com/blogs/706
[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.
[11] http://www.fazieditore.it/Libro.aspx?id=572
[12] http://thenewalexandrialibrary.com/trends.html
[13]http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/feb/03/communism-capitalism-socialism-property
[14] http://www.lacan.com/baddiscipline.html
[15] http://www.cup.columbia.edu/book/978-0-231-15802-2/hermeneutic-communism
[16] http://southoftheborderdoc.com/
[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia  4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras e princípios us. na interpretação do texto legal (…). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné) ‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón ’relativo a interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do Dicionário Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]
[18] http://therightsofnature.org/bolivia-experience/
[19] http://www.thenation.com/article/muscling-latin-america
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FONTE: Outras Palavras

sábado, 21 de julho de 2012


Eleições em Cuba: breve análise de um modelo de democracia

O sistema eleitoral cubano talvez seja um dos mais democráticosda atualidade. Seu estudo descortina um horizonte político desconhecido de muitos: a participação livre, o alto índice de comparecimento dos eleitores, a desvinculação ao modelo partidarista, a escolha dos candidatos pelos próprios eleitores, etc.Tudo isso desaguando num sistema misto de participação direta e indireta.

Por Gabriela de Souza Guedes (*)

O atual modelo foi instituído pela Reforma Constitucional de1975, após um período de transição sem eleições (1959-1975), considerado necessário para o amadurecimento do processo revolucionário, para as adaptações das instituições políticas e a contenção de uma forte resistência contrarrevolucionária.

Candidatos são indicados pelos eleitores, não pelo partido

O novo sistema reintroduziu a participação popular em novos moldes de representatividade e participação, desenvolvidos segundo as peculiaridades históricas, políticas e geográficas da ilha. 

Atualmente em Cuba são realizadas eleições gerais a cada cinco anos e eleições parciais a cada dois anos e meio, visando preencher as vagas da Assembleia Nacional do Poder Popular (deputados/mandato 5 anos), das Assembleias Provinciais do PoderPopular (delegados/mandato de 5 anos) e das Assembleias Municipais do Poder Popular (delegados/mandato de 2,5 anos), sendo esta a base do sistema representativo. 

Para a escolha dos delegados e deputados o voto é direto e a Assembleia Nacional do Poder Popular elege, dentre seus deputados, o Conselho de Estado, integrado por um presidente, um primeiro vice-presidente, cinco vice-presidentes, um secretário e vinte e três membros. O presidente do Conselho de Estado é Chefe de Estado e Chefe de Governo, cargo ocupado atualmente por Rául Castro.

Eleitores podem revogar mandatos

Uma característica importante desse sistema é que os mandatos podem ser revogados: o eleitor poderá destituir o delegado eleito, caso este descumpra as obrigações assumidas com sua base eleitora ou não preste contas devidamente. Destaca-se, também, que pode haver acumulação de cargos nas Assembleias, ou seja, a mesma pessoa pode exercer simultaneamente diversos cargos eletivos.

Com relação à remuneração, a Constituição (artigo 82) estabelece que durante o tempo em que desempenham suas funções políticas, os deputados recebem o mesmo salário de seu "posto de trabalho", mantendo o vínculo com este para todos os efeitos.

Com a Reforma Constitucional, a participação do eleitor apresentou-se pela forma do voto universal, secreto e livre, calcado somente na consciência política do cidadão, sendo que desde outubro de 1976 (primeira experiência do novo modelo) a participação do eleitorado sempre esteve acima de 96%.

Não há na Constituição de Cuba nem na Lei Eleitoral a referênciaà necessidade de se estar filiado a partido político para concorrer. Consequentemente, a eleição é feita pelo modelo majoritário, sendo necessária a obtenção de mais da metade do número de votos válidos na respectiva base eleitoral (Nacional, Provincial ou Municipal).

Um novo modelo de democracia

No atual sistema, as candidaturas para Assembleia Municipal do Poder Popular são indicadas pelo próprio eleitor em Assembleia criada para este fim. Esse mecanismo é coordenado pelas Comissões de Candidatura e todos os eleitores participantes têm direito a propor candidatos a delegados e resulta indicado aquele que obtiver maior número de votos.

O sistema eleitoral cubano apresenta inovações importantes sobre bases clássicas da ciência política, em um novo modelo democrático dentro de um governo socialista, demonstrando claramente que a democracia não está vinculada ao modelo capitalista. Porém, percebe-se que o conhecimento desta realidade somente está disponível para quem se dispõe a furar o bloqueio estadunidense, que muito além de econômico, atua incessantemente nas fronteiras da informação.


(*) Gabriela de Souza Guedes é especialista em História da América Latina pela URI - Campus Erechim, graduada em Direito e servidora da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS)

FONTE: Pravda.ru

sexta-feira, 13 de julho de 2012

WEITLING, Wilhelm


Nasceu em Magdeburgo, na Prussia, em 5 de outubro de 1808. Filho de pai francês e mãe alemã, exerceu a profissão de alfaiate, viajando por muitas regiões da Alemanha. É considerado por Max Beer como o  “único grande comunista alemão anterior a Marx”. 

Para escapar do serviço militar, deixou a Prússia e se estabeleceu em Paris em 1836, iniciand0-se na leitura do socialismo  em  Lamennais (representante do  socialismo  cristão), Saint-Simon, Fourier, Cabet e August Blanqui.

Em 1837 aderiu à Liga dos Justos, tornando-se o seu principal teórico, dirigindo-a até 1844, defendendo nessa época a idéia de que o proletariado seria o instrumento de libertação da Humanidade e concebendo a Revolução como resultado de um movimento de massas.

A influência de August Blanqui, levou-o a desacreditar da possibilidade de se estabelecer o comunismo pela persuasão, inclusive da classe dominante, ao modo dos utópicos, passando a admitir  que a nova sociedade só seria alcançada pela violência,cujos personagens mais revolucionários seriam  o proletariado desempregado, os marginais, o “lumpem-proletariat”.

Comprometido com o levante blanquista de 1839, foi obrigado a fugir para a Suíça onde foi preso em 1843 e entregue ao governo prussiano. Condenado a quatro meses de prisão, recorreu ao Supremo Tribunal que elevou sua pena para seis meses, sendo em seguida ao cumprimento da pena, expulso do país.

Viajou para Londres, onde foi recebido pelos socialistas, cartistas ingleses,  exilados franceses e alemães, com uma grande manifestação. De Londres seguiu para  Bruxelas e chegou aos Estados Unidos em 1846, regressando à Alemanha em 1848. 

Com o fracasso da Revolução liberal de 1848 na Alemanha da qual participara, foi novamente expulso, retornando aos Estados Unidos onde fundou a organização  "Liga da Emancipação" e o jornal "A República dos Trabalhadores". 

Considerado por Engels como “o fundador do comunismo alemão”, chegou a elaborar um plano de uma futura sociedade comunista que deveria ser implantada através de um "assalto ao poder" por um grupo de homens capazes. Defendeu a idéia da instalação de uma ditadura revolucionária como período de transição para o comunismo. 

A partir de 1842 passou a defender a organização política e sindical da classe operária, sua independência da influência burguesa, bem como passou admitir que a emancipação dos operários deveria ser  obra da própria classe operária. 

Weitling faleceu em 25 de janeiro de 1871 em Nova York, deixando as seguintes obras: "A Humanidade como é e como deveria ser" (1833), "As Garantias da Harmonia e da Liberdade" (1842), "Evangelho do Pobre Pecador" (1843). 


(Dados compilados por Aluizio Moreira)

Fontes:
Arquivo Marxista na Internet
BEER, Max. História do socialismo e das lutas sociais.São Paulo:Expressão Popular,2006.
BRAVO, Gian Mario. Historia do socialismo. Lisboa:Europa-America, 1977, 3 vols.
COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista.Mexico:Fondo de Cultura, 1957-1960, 7 vols.
DROZ, Jacques (Dir). Historia geral do socialismo. Lisboa: Horizonte, 1972-1977, 9 vols.
HOFMANN, Werner. A historia do pensamento do movimento social dos séculos 19 e 20. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1984.
PETITFILS, Jean-Christian. Os socialistas utópicos. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Mudar o mundo sem tomar o poder? Diálogo entre John Holloway e Enrique Dussel



O debate entre Holloway e Dussel ocorreu no contexto do Primeiro Encontro do Bom Viver realizado na cidade de Puebla, México, na segunda quinzena de março [...] consideramos relevante agregar parte da apresentação do autor boliviano Luis Tapia, quem participou da mesa Estado, sobre a relação entre movimentos sociais e o governo de Evo Morales nesse país. 

Por Bruno Miranda.


A mesa, intitulada Mudar o mundo sem tomar o poder?, fez parte do eixo temático Poder e foi também acompanhada de outras mesas cujos eixos temáticos foram Estado, Violência e Autonomias. Os dois autores já tinham se encontrado em 2004 no México dois anos depois da publicação de Mudar o mundo sem tomar o poder, de Holloway. Trata-se, pois, da continuação do debate sobre a mediação ou não do Estado em processos de mudança e revolucionários, assim como do papel que cumpre o Estado como instituição social. [1] Em virtude das referências que fizeram ambos os autores ao cenário político da Bolívia, consideramos relevante agregar parte da apresentação do autor boliviano Luis Tapia, quem participou da mesa Estado, sobre a relação entre movimentos sociais e o governo de Evo Morales nesse país.

Enrique Dussel

Dussel inicialmente chamou a atenção do público presente para a relevância da noção do Bom Viver, uma vez que é um conceito fundamental dos chamados povos originários da região, assim como tem tido presença em maior ou menor grau nos discursos dos governos da Bolívia, do Peru e do Equador. Segundo o pensador argentino, a análise dos povos originários “pressupõe uma ruptura epistemológica radical dentro do pensamento moderno e do marxismo, pressupõe uma descolonização epistemológica”. Nesse sentido, parafraseou o presidente boliviano Evo Morales, que, quando se refere à revolução supostamente em curso na América Latina, se refere a uma revolução “não violenta, sucessiva, não democrática, mas social-democrática, uma revolução cultural, não limitada às artes, mas num sentido integral que abarque toda a atividade humana: as atividades agropecuárias, a política, as relações sociais, até a economia”.

Entrando especificamente no debate sobre o poder, Dussel afirmou que “a esquerda em geral que tem criticado o poder, incluindo o Estado, não tem tido o cuidado de tratar o poder não como algo que se tem, mas como algo que se exerce e reside única e exclusivamente no povo, portanto não se toma, se fortalece ou se debilita. O poder do Estado é um poder delegado. Toda a América Latina, exceto Honduras, Chile, Colômbia, México, está em mãos de governos de centro-esquerda, ainda que seja cinco graus à esquerda, alguns mais outros menos, mas estão no poder. Então a responsabilidade do intelectual já não é só a crítica da política. Isso é fácil. É preciso passar ao “poder obediencial”, em palavras de Evo Morales e que também dizem os zapatistas ao mencionar o “mandar obedecendo”. O que fez Evo Morales foi governar obedecendo ao povo. A responsabilidade dos intelectuais hoje em dia é oferecer uma teoria positiva da política para os que exercem o poder em nome do povo, para iluminar os governantes. Como posso pedir a Evo Morales que dissolva o Estado? Claro, cuidado, é preciso saber o que significa. Isso é um postulado e um postulado é o que pode ser pensado teoricamente, mas empiricamente é impossível porque é uma ideia regulativa. Eu aceito, mas isso é uma ideia regulativa. O Estado não é essencialmente burguês”.

Para sustentar a ideia de que o Estado existiu antes da própria modernidade capitalista, Dussel tomou como exemplo o Egito (em outras ocasiões já utilizou o Império Inca como exemplo), já que foi uma realidade há mais de cinco mil anos, por ter tido uma classe e uma burocracia. Não era um Estado burguês, era um Estado tributário. Segundo o autor argentino, “o Estado não é mais que uma instituição. O problema é como se lida com ele. Não podemos ser ingênuos: não é tão fácil administrar o Estado ou se responsabilizar por ele; é preciso redefini-lo e interpretá-lo de outra maneira; é preciso estar atento e rejeitar a concepção liberal do Estado que nos mantém como meros indivíduos isolados mediante um contrato […] se não aceitarmos o indivíduo e no seu lugar existir a comunidade, estaremos rejeitando o Estado liberal desde o princípio. Eu não parto do Estado liberal e burguês, mas preciso sim de uma macro-distribuição que seja poder obediencial a mando do povo. A dissolução do Estado como organização empírica e mediada é muito próxima da proposta de [Robert] Nozick, da extrema direita, para que o Estado esteja nas mãos das transnacionais e da iniciativa privada. Para que precisamos do exército? Temos mercenários. Para que precisamos da polícia? Temos segurança privada. Isso diz a extrema-direita…e diz a extrema-esquerda também”.

Portanto, “uma coisa é a dissolução do capital e, além disso, a construção de um novo sistema, e outra coisa é a dissolução do Estado e a desaparição da política. E foi a posição de Marx. Dentro do socialismo real, no começo eu achava que o problema era Stalin, depois percebi que era de Lenin e depois que era do próprio Marx. Marx tinha uma visão negativa da política. E tinha uma visão positiva do social. O elemento econômico-social é fundamental, mas a sociedade tem que bombardear o Estado”. Seguindo a mesma linha de pensamento, Dussel indica um problema: “depois da revolução, começa a batalha da política e começa a verdadeira discussão. Daí começa a se falar de democracia, participativa e representativa, ambas articuladas. Não pura participação, porque se gera caos. E não pura representação, que está corrompida em todo o mundo, mas a representação que é julgada a partir da participação. No bairro, nas assembleias de bairro, aí tem democracia direta, nos reunimos cara-a-cara, discutimos a questão da segurança comunitária, do esgoto, da luz elétrica, tudo. Mas quando passamos ao município, já tem que haver uma organização participativa-representativa. Se necessita certa profissionalização do político. O perigo é a burocracia, pior que isso, é inevitável”.

Em sua primeira intervenção, o argentino concluiu que “a experiência liberal, a experiência europeia, norte-americana, não serve para nós. Temos que partir da experiência do que nossas revoluções estão construindo. Temos que ser muito duros quando nos propõem doutrinas que não foram descolonizadas epistemologicamente e que ainda acreditam na modernidade, e não enxergam além da modernidade, como nos mostra o “bom viver” dos povos originários”.

John Holloway

Holloway tem um ponto de partida radicalmente diferente. O acadêmico irlandês disse que sua visão do Estado atual, baseado no capitalismo, está provocando “um tsunami de destruição e morte e essa dinâmica está chegando a proporções que ameaçam a existência da humanidade, por estar baseado na injustiça, na violência e na exploração, coisa que é visível no campesinato, na destruição das cidades, das terras pela atividade mineira e na própria crise mundial. Se quisermos entender a sociedade e o que está acontecendo com ela, então temos que começar com a categoria de capital, não como uma categoria econômica, mas como um conceitualização dinâmica do assalto em que nos encontramos. O problema para nós não é só como melhorar os níveis de vida de muita gente – o que é importante – mas o mais importante é romper com essa dinâmica de morte. Será que já não podemos? Eu me rejeito a aceitar a destruição da humanidade”.

Para ele, “o Estado não é qualquer instituição. O Estado é uma forma de organização social que se desenvolve historicamente e que tem duas características fundamentais: de excluir ou expropriar e de reintegrar. Quero dizer com isso que o Estado é um produto do desenvolvimento histórico. Com o desenvolvimento do capitalismo, se desenvolve o Estado, como instância amparada na lei, amparada nos capitalistas, amparada no econômico pela primeira vez. E o mais importante é que o Estado incorpora em si mesmo uma separação entre a sociedade e a sua própria organização, isto é, o Estado é a separação de um grupo de funcionários da população. E desconfiamos da responsabilidade desses funcionários para organizar a sociedade, respeitando a separação do econômico e do político e obviamente o capital e os capitalistas”. Além disso, para Holloway, “o Estado capitalista moderno é essencialmente excludente e essa exclusão do resto da sociedade começa com as tradições, a linguagem, a forma de vestir, o comportamento de quem forma parte do Estado, com o único fim de controlar a vida social da população. Quando digo que NÃO através do Estado, não estou dizendo que a organização social não seja importante: é essencial, mas o Estado é uma forma de organização particular desenvolvida historicamente para excluir a população do controle social das suas próprias vidas. Minha impressão do processo boliviano é de uma revolução expropriada. Uma revolução que já não era propriedade dos revolucionários”.

Holloway agregou que “num segundo momento, o Estado nos reintegra, nos reconcilia com a reprodução do capitalismo, com a reprodução dessa dinâmica de morte. Simplesmente porque a existência do Estado depende da reprodução do capital. Para ter renda, o Estado, através dos impostos, depende da acumulação de capital, incluindo os salários dos professores universitários. Não quero dizer com isso que não se possa realizar mudanças significativas através das estruturas do Estado […] mas essas mudanças ocorrem paralelas à transformação do sujeito em objeto da política estatal, convertendo as vítimas em pobres, convertendo os rebeldes em cidadãos, afastando-nos da perspectiva de romper com a dinâmica do capital. Alguns líderes propõem a destruição do Estado burguês, mas propõem fazê-lo através da construção de um Estado comunal. Essa é uma expressão totalmente contraditória, porque o Estado exclui e a comuna inclui. Então, falar de Estado comunal ou de Estado soviético é ocultar uma contradição que temos que reconhecer. No caso da URSS, tratou-se de ocultar a supressão dos soviets, dos conselhos, das comunas”.

Dessa forma, “o Estado canaliza as lutas sociais. Obviamente isso nos deixa com o problema de que, se não for através do Estado, então como podemos mudar o mundo? A resposta ainda não sabemos. Por isso estamos aqui discutindo. Não temos as respostas, mas temos as experiências de pessoas que estão criando outra lógica de existir, viver e criar um Bom Viver […] Se o capitalismo é o “mau viver”, o “bom viver” é algo contrário a esse sistema que domina. É preciso ver as experiências e respeitá-las. E criticá-las, como forma de demonstrar nosso respeito. Ainda que possam parecer tontas, essas experiências estão cheias de fendas (gretas), de gente que diz NÃO a esse sistema. Existem milhões de formas de fazer isso”.

Réplica de Enrique Dussel

Em sua réplica, o autor argentino foi taxativo: “o problema da política é o poder, não a questão do trabalho. É o domínio sobre o trabalho que é exercido a partir do poder. Esse é outro problema. E outro problema que Marx não tratou. Marx não teve tempo de escrever outros três tomos sobre o Estado. Mas é preciso fazê-lo. Então, o tema do Estado não tem tanto a ver com a economia, mas com a política. A política determina a economia e vice-versa, mas não é a mesma coisa. O Estado por natureza não deve excluir. Exclui quase sempre quando se burocratiza e a burocratização é praticamente inevitável. Como se luta contra isso? Institucionalizando a participação pela primeira vez na história. Nunca se organizou a participação articulada à representação. A democracia liberal é puramente representativa. Leiam John Stuart Mill em 1860 em Observações sobre a democracia representativa”.

Ele rebateu as observações de Holloway sobre o Estado dizendo que não aceita a definição do Estado como essencialmente excludente. Dussel se pergunta: “qual o trabalho dos intelectuais? Trabalhar com movimentos sociais de base, dar suporte e auxiliar movimentos, mas eleições, governantes, etc., se diz que tudo isso está “corrompido por natureza”. Então, isso o intelectual não interpela. O que acontece então? Se são corruptos e não quero ser corrupto, não interpelo. Mas no final das contas os corruptos continuam trabalhando na política. A conclusão é que o México está destruído. A extrema-esquerda não quer se meter na política eleitoreira…e quem vai salvar o país? A extrema-esquerda acusa quem não entende de política, mas a entrega aos corruptos. E fazem isso com muita força, com o argumento moralista de que estão destruindo a política […] Não aceito essa visão negativa da política”.

Dussel abordou os movimentos sociais no México e indicou outro problema: “os movimentos mais honestos, mais idealistas, melhores, não estão dispostos a fazer política. Se não fazem política, estão entregando; e se entregam são responsáveis diante da história. A política é realismo com princípios éticos, deve ter alternativas anticapitalistas, tudo bem. Mas vamos solucionar o problema da política criando falanstérios a la Saint Simon? Criando grupos cooperativos em muitas partes do país e que somados todos consigam transformar o México? Nunca vão fazer isso. Nunca fizeram isso na história. É mais provável que 15 ou 20 grupos tenham uma ideia clara das coisas e façam política, façam que o povo participe e se organize e daí consigam uma transformação ao longo do tempo […] Vivemos um momento-chave no país. Se fosse só um problema teórico, não me entusiasmaria tanto, mas é um momento político real”.

Tréplica de John Holloway

Brevemente, Holloway mais uma vez sustentou que não entende quando se diz que o Estado não deveria ser essencialmente excludente. Segundo o irlandês, “parece realmente um liberalismo puro, mas é um liberalismo puro fora da realidade. Os mecanismos da democracia representativa excluem, um corpo de funcionários de tempo completo exclui necessariamente. Temos como desafio urgente apropriar-nos do mundo, ocupar o mundo como nos propõem os movimentos Occupy, não só como expressão da nossa dignidade como humanos, mas também como expressão da nossa responsabilidade. Porque realmente não tem sentido dizer que vamos assumir nossa responsabilidade entregando-a ao Estado, aos funcionários e aos políticos. Não tem sentido! Porque é isso o que o Estado nos habilita a fazer. No melhor dos casos, o Estado nos diz: “não se preocupem. Vão para casa e nós vamos nos ocupar dos problemas. Nós somos gente boa, somos profissionais. Não se preocupem! Não estou atacando López Obrador, nem Chávez, nem Morales. Estou dizendo que essa simplesmente não é a nossa política! Nossa política não é uma política de entrega de responsabilidades, mas de assumir nossa responsabilidade, de mudar o mundo a partir do lugar em que nos encontramos, aqui e agora de todas as formas que possamos! Trata-se de unir movimentos para criar um contra-tsunami para abrir outro mundo e um futuro para a humanidade”.

Os movimentos sociais em risco de reproduzir o capitalismo, alerta Luis Tapia [2]

Os movimentos sociais latino-americanos correm o risco de continuar reproduzindo a lógica capitalista e terminar controlado e dominando os operários, camponeses e indígenas que os integram. Esse foi o alerta feito por Luis Tapia, quem expôs o exemplo do atual presidente do país, Evo Morales, como alguém que chegou a esse cargo sob a bandeira do movimento indígena, mas que agora “se transformou no pior inimigo deles”.

Ele agregou que o caso da Bolívia é exemplar, pois os indígenas nesse país passam por um processo de substituição, e essa experiência deve ser levada em conta para evitar que aconteça o mesmo com outros movimentos sociais latino-americanos. Tapia afirmou que o caso de Evo Morales é especial porque o mandatário tem origem aymara, mas fez sua carreira numa região indígena quéchua. No entanto, em nenhum momento da sua vida política reivindicou sua origem indígena, porque fazia parte de um sindicato de produtores de coca.

Por isso, tinha uma identidade mais camponesa, que também nunca assumiu, inclusive antes de ganhar as eleições presidenciais no país. Quando chegou ao poder, isso mudou, porque no exterior foi criada a percepção de que era o primeiro presidente indígena, mas isso foi midiatizado porque convinha, apesar de Evo Morales nunca ter organizado assembleias indígenas; ele pertence a uma mestiçagem relacionada com o mercantilismo, não com a cosmovisão dos povos originários desse país.

Tanto assim que o Movimento Alternativo Sindical e o Movimento ao Socialismo, que é o partido de Evo Morales, por um tempo foram defensores da soberania nacional e num momento de crise dos demais movimentos sociais, a população boliviana votou no MAS. “O que aconteceu depois é que o MAS teve um projeto de monopólio do poder político, gerou uma nova burocracia política que tem origem popular (seus membros) foram dirigentes sindicais ou de algum outro setor, mas de origem aymara ou quéchua, o que lhes dá um forte poder simbólico, pretendendo monopolizar a representação dos indígenas mas afastando-os do governo”, indicou o acadêmico.

Atualmente o poder na Bolívia tem uma representação indígena. Alguns ministros foram “convidados” a ser ministros, deputados ou secretários, mas esse convite “vem de cima” e eles não são eleitos por uma base social e também não possuem vínculos com suas culturas”, destacou.

“O MAS boliviano se centrou na construção de um poder político, num Estado no sentido amplo, mas expulsou gradualmente os indígenas ao ponto de se enfrentar com eles”, afirmou Tapia. “E isso tem a ver com seu projeto econômico. Acho que hoje o MAS não é nem sequer um partido nacionalista porque seu plano de governo são hidrelétricas, represas e rodovias para conectar o Pacífico com o Atlântico e que favorecem fundamentalmente o capital brasileiro. O conteúdo do atual governo está subordinado ao Estado e à geopolítica do Brasil, e aí também não tem nacionalismo”, sublinhou.

Disse que a Bolívia também não é um Estado plurinacional porque, nos compromissos que o governo de Evo Morales consolidou com o Brasil, existe a intenção de conseguir poder econômico e político, mas de origem externa, nunca interna. “Há dois anos estamos enfrentando essa contradição: uma ajuda externa para o atual governo do Brasil e um distanciamento interno, o que tem feito com que o conteúdo do atual governo seja invadir territórios indígenas”, apontou.

Notas:
[1] Parte do diálogo entre Holloway e Dussel foi traduzido da página do evento.
[2] Texto de autoria de Javier Puga Martínes, integralmente traduzido .

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FONTE: Passa Palavra