terça-feira, 27 de março de 2012

Os comunistas e o chamado “Socialismo do século XXI”

Por Pável Blanco Cabrera (1)


Em memória de Vladimir Ilich Lenin, no momento em que se celebram os 140 anos do seu nascimento.


Pavel Blanco Cabrera
A contrarrevolução mundial no final do século XX impulsionou, no campo ideológico, a conhecida tese do fim da História, uma campanha que, tendo como objetivo a afirmação de que o capitalismo durará para sempre, questiona a validade do marxismo-leninismo e pretende desarmar a classe operária e o povo oprimido na sua luta pela emancipação. Igualmente conhecida como desideologização, esta pretensão desenhada pelos ideólogos ao serviço do imperialismo tem como objectivo desacreditar a teoria comunista e a praxis da construção socialista, usando o efeito da crise que conduziu à temporária regressão da classe operária na URSS e em outros países do campo socialista na Europa, Ásia e África. Ao mesmo tempo, tirando vantagens da confusão instalada, neste momento, no movimento operário e nos partidos comunistas – muitos dos quais renunciaram à sua identidade e objetivos, transformando-se em partidos social-democratas –, cultivou o surgimento de novas fórmulas da ideologia dominante, como o pós-modernismo e outras variantes, de forma a influenciar não apenas universidades e centros de formação, de cultura e de arte, mas igualmente uniões, movimentos populares, intelectuais progressistas, organizações e forças políticas de esquerda, e, ainda, atingir negativamente os partidos comunistas e operários.

O objectivo geral da estratégia imperialista não foi concluído, uma vez que a realidade não pode ser metida num colete-de-forças e que a luta de classes não parou um segundo que fosse, não obstante o facto de a contrarrevolução, neste momento triunfante, apresentar os eventos históricos distorcidos a seu favor. Hoje – duas décadas após a queda do muro de Berlim e depois de toda a irracionalidade que se lhe seguiu – o capitalismo em crise faz face, em todos os continentes, à luta da classe operária e dos movimentos comunistas e anti-imperialistas. Todavia, num plano secundário, tal situação permitiu que tomassem forma uma série de perspectivas que, hoje em dia, se podem tornar obstáculos à necessária elevação da luta a novos níveis favoráveis à classe operária internacional e a todos os povos do mundo. Muitas dessas perspectivas convergem no chamado “Socialismo do século XXI”.

O chamado “Socialismo do século XXI” não pode ser identificado com a elaboração teórica de apenas uma única corrente política e ideológica, uma vez que corresponde à confluência de diferentes correntes conhecidas pela sua hostilidade em relação ao marxismo-leninismo e ao movimento comunista internacional: por exemplo, diferentes grupos trotskistas; defensores da nova esquerda; marxistas latinoamericanos; defensores do movimentismo e do neo-anarquismo; intelectuais que consideram a sua contribuição produzida nas teias da Academia como indispensável e essencial aos processos sociais. A paternidade de tal conceito não pode, deste modo, ser atribuída a uma única corrente, a um único autor, apesar de todos eles terem procurado como plataforma o actual processo em curso na América Latina, em particular na Venezuela, na Bolívia e no Equador, mas sem renunciar à sua universalidade, considerando inviável qualquer outra abordagem. Outro elemento das suas posições diz respeito ao facto de insistirem no “novo”, na “inovação”, no “novíssimo” carácter das suas propostas, considerando o movimento operário do século XX e as ideias marxistas-leninistas velhas e datadas.

Na luta de classes, desde que as condições para o desenvolvimento tornaram possível a criação da concepção materialista da história, não é a primeira vez que os comunistas se confrontam com correntes que, em nome do socialismo, apresentam posições da pequena burguesia; tampouco é a primeira vez que a questão reforma ou revolução são colocadas frente a frente.

Na Ideologia Alemã e no Manifesto do Partido Comunista, apenas para citar dois trabalhos de Karl Marx e de Friederich Engels, são realizados ajustes de contas com o “verdadeiro socialismo”, com o “socialismo reacionário” (“feudal”, “pequenoburguês”), com o “socialismo reacionário ou burguês” e com o “socialismo e comunismo crítico-utópico”. Num outro trabalho, resultante de uma polémica entre Marx e Engels, por um lado, e Dühring, por outro (embora o trabalho, como era hábito na divisão de tarefas dos professores do proletariado levasse apenas a assinatura de um deles), é afirmado o seguinte: “Desde que o modo de produção capitalista apareceu na arena da história, houve sectores individuais e coletivos que projetaram, mais ou menos vagamente, como um futuro ideal, a apropriação de todos os meios de produção pela sociedade. No entanto, embora seja viável, a partir do momento em que se torna uma necessidade histórica, passaram a ser necessárias condições objetivas para a sua execução” (2).

Uma síntese das críticas de Marx e de Engels mostra-nos que nem tudo o que é apresentado em nome do socialismo tem a ver com o papel histórico do proletariado e dos comunistas:

A negação do socialismo construído no século XX

Entre os promotores do chamado “Socialismo do século XXI” há uma coincidência fundamental: a demarcação e a rejeição da experiência da construção socialista na URSS e em outros países da Europa e da Ásia. Alguns de entre esses promotores vão mais longe, culpabilizando a própria Revolução de Outubro, assumindo as velhas ideias de Kautsky e dos oportunistas da II Internacional sobre a imaturidade das condições para a conquista do poder político pela classe operária e a impossibilidade de construção do socialismo (porque o que era adequado era desenvolver o capitalismo), derivando daqui as bases para a alegada separação entre democracia e comunismo; isto para explicar que tudo estava condenado, de antemão, ao falhanço.No entanto, a generalidade dos promotores do “Socialismo do século XXI”, apesar de reivindicar a herança da Revolução de Outubro, assume a crítica trotskista em relação à construção do socialismo e ao papel do Partido Bolchevique, assim como, em geral, ao marxismo-leninismo, em matérias fundamentais que a seguir examinaremos. Neste aspecto, estas teses não podem, por exemplo, ser diferenciadas das que foram assumidas pelo grupo oportunista de Bertinotti no V Congresso do Partido da Refundação Comunista de Itália, em 2002, que defendeu uma “interrupção radical no que diz respeito à experiência socialista tal como estava a ser levada a cabo”, acrescentando que se deveria efectuar “um corte radical com o estalinismo”.

Algumas destas ideias – realmente reacionárias –, proclamadas como sendo características do chamado “socialismo do século XXI”, não são criticadas, diz-se muitas vezes, em nome da táctica, para não torpedear os processos na Venezuela, Bolívia e Equador, que estão no centro da luta anti-imperialista da América Latina. Há, aliás, partidos comunistas que, em nome desse taticismo, integraram esse conceito no seu vocabulário quotidiano, quer na propaganda quer em questões programáticas.

Não queremos – apesar das nossas divergências de pontos de vista – desrespeitar esses processos, que apoiamos. Estes processos não nasceram sob a bandeira do “socialismo do século XXI” e bastantes progressos foram feitos em relação aos programas iniciais; no entanto, consideramos necessário acrescentar que estes não são processos consolidados e que a confusão ideológica promovida através da ideia do “socialismo do século XXI” podem levá-los à derrota. Como Marx, consideramos que um passo do movimento real vale mais do que mil programas; sabemos, apesar disso, que um programa erróneo pode destruir tudo. É um dever de todos os comunistas considerar o socialismo científico como o caminho da classe operária e de todos os povos, assim como defender o marxismo-leninismo e a prática da construção socialista na URSS e nos outros países socialistas.

Sem proceder a um estudo sério e científico sobre a experiência que levou à destruição do capitalismo, a histórica experiência da classe operária encontra-se condenada por premissas elaboradas pela reação ou pelo oportunismo, reformismo e revisionismo. Os comunistas devem ter em conta que, da mesma maneira que pouco mais de 70 dias da Comuna de Paris providenciaram ensinamentos extraordinários que enriqueceram a teoria revolucionária do proletariado, também a experiência de construção do socialismo que começou com a Grande Revolução Socialista de Outubro continua a ser um património de valor herdado pelo proletariado, património este que o ajuda na sua luta pela construção do socialismo e do comunismo, não devendo, por isso, ser rejeitado nem evitado. Nesse sentido, estamos de acordo com o que está expresso no documento do Comité Central do Partido Comunista da Grécia Sobre os 90 anos da Grande Revolução Socialista de Outubro: “Uma das principais tarefas da frente ideológica dos comunistas é a de restaurar, aos olhos da classe operária, a verdade sobre o socialismo no século XX, sem idealizações, de forma objetiva, livre dos pressupostos pequeno-burgueses. A defesa das leis do desenvolvimento do socialismo e, ao mesmo tempo, a defesa da contribuição do socialismo no século XX pressupõe uma resposta às teorias oportunistas que falam de “modelos” de socialismo adaptados a peculiaridades “nacionais” e responde, igualmente, à discussão derrotista sobre os erros” (3).

Sujeitos emergentes versus classe operária

Aqueles que desenvolvem o “Socialismo do século XXI” afirmam em uníssono que o papel revolucionário da classe operária se encontra, hoje em dia, ocupado por outros “sujeitos”, apelando, inclusivamente, à construção de novos agentes sociais. Vão buscar argumentos da nova esquerda, do marcusianismo, dos anos 60 e 70, sobre o aburguesamento da classe operária, sobre a sua fragmentação e sobre o “fim do trabalho”. Dizem ser necessário repensar o conceito de “trabalhador” e, sem fazerem tal exercício, passam a reclamar os movimentos sociais, os indígenas e a “multidão” como o centro da transformação.

Ora, um dos aspectos essenciais do marxismo-leninismo diz respeito à clarificação do papel do proletariado. Lénine expressa esta ideia, afirmando: “O aspecto mais importante na doutrina de Marx é o que enfatiza o papel histórico internacional do proletariado como construtor da sociedade socialista”. No mesmo trabalho, acrescenta: “Todas as doutrinas do socialismo que não têm um carácter de classe assim como todas as políticas que não são de classe mostraram ser um perfeito absurdo” (4). Efectivamente, tem havido algumas mudanças; no entanto, estas mudanças não destruíram a contradição do capitalismo, ou seja, a contradição existente entre a burguesia e o proletariado; tampouco destruíram o facto de o proletariado ser a única classe efetivamente revolucionária capaz de levar a cabo, não apenas a destruição da burguesia, mas igualmente a emancipação de todo o género humano. Tais teorias não levam, assim, em conta o facto de o papel do proletariado ser determinado pelo lugar que ocupa na produção, ou seja, pelo seu objetivo papel na economia. O proletariado, a classe operária, os trabalhadores, uma vez que adquirem consciência de classe “para si” não se emancipam, apenas, a eles próprios, mas todo o género humano.

Ninguém negará que, na luta política, a classe operária necessita de fazer e deve forjar alianças com a massa oprimida dos povos. Existe, no entanto, uma distância entre o que acabamos de dizer e as afirmações daqueles que procuram “novos atores sociais”, atribuindo-lhes um papel libertador acima dos conflitos de classe, quando a realidade mostra quão passageiros são, de facto, estes movimentos.

Socialismo sem Revolução e… sem partido

O “socialismo do século XXI” clama que a conquista do poder ou a destruição do Estado são necessárias, defendendo que, através da conquista do governo, é possível iniciar um novo caminho. Precisamente pelo facto de os seus defensores não falarem de derrube, de quebra, nem de Revolução (saltando, aliás, este passo essencial), eles apresentam o pós-capitalismo e imaginam já programas para transitar para uma nova sociedade. Devido a esta concepção político-ideológica sem sentido, não existe, sequer, uma estratégia mínima que possa levar à destruição do Estado. Consequentemente, a preocupação em constituir um partido revolucionário da classe operária, um partido de vanguarda, um partido comunista, não existe. Para quê, se eles não consideram a classe operária como o principal interessado na destruição dos exploradores? Para quê, se a Revolução não é defendida como sendo fundamental para destruir o capitalismo? Para quê, se a possibilidade de levar a cabo transformações pós-capitalistas é feita sobre o que resta do velho Estado burguês?

Tais concepções levam-nos a crer que, uma vez implantado o “Socialismo do século XXI”, a propriedade privada e social são capazes e devem coexistir – inclusivamente, é feita uma apologia do mercado socialista.

Quando se observam os pontos programáticos do “Socialismo do século XXI”, não podemos deixar de notar as similitudes com a Revolução democrático-burguesa mexicana de 1910 e com o período e desenvolvimentos de natureza radical ocorridos durante o governo de Lázaro Cardenas, entre 1934 e 1940. Durante estes seis anos, foi estabelecido que nas escolas, nas organizações sociais e nas administrações estatais, a Marselhesa e a Internacional fossem cantadas lado a lado com o hino nacional; foi realizada uma impressionante distribuição de terras e uma verdadeira reforma agrária; o petróleo, até então nas mãos de monopólios americanos e ingleses, foi nacionalizado; foi, aliás, em geral, levada à prática uma política de nacionalizações que fez com que, nos anos 80, 70% da economia mexicana fosse nacionalizada; foi, ainda, dada uma grande ajuda à República Espanhola. Tendo em conta estes aspectos, e sob a influência exercida pelo browderismo, cresceram as ilusões relativamente à Revolução Mexicana como caminho para chegar ao socialismo. Tal como os seguidores de hoje do “Socialismo do século XXI”, também naquela época se falou de que um Estado que se colocava acima das classes e da luta de classes seria uma alavanca para o desenvolvimento. Ora, para os marxistas-leninistas, o Estado não se encontra acima das classes em combate; ele é o aparelho de dominação, de repressão, no caso que nos ocupa, do capitalismo, da classe que possui os meios de produção e de troca – a burguesia. As nacionalizações não são, por si só, socialistas; no caso do México, aliás, mostraram ter sido um mecanismo para a centralização e para a concentração capitalistas. 

Em vez da contradição entre o capital e o trabalho: o norte contra o sul, o centro contra a periferia

Outra noção sustentada pelo “Socialismo do século XXI” é aquela que considera que um dos problemas fundamentais consiste em resolver a contradição entre o Norte rico e o Sul pobre, partindo de estatísticas desanimadoras e, acima de tudo, deixando de lado o facto de que tanto no sul como no norte do planeta a luta de classes existe; o mesmo acontece com a prejudicial ideia de um centro que se opõe a uma periferia, a qual, no entanto, ignora o facto de que vivemos na fase monopolista do capitalismo, na fase superior do capitalismo – que é o imperialismo – e de que todos os países nele estão integrados, tal como acontece com as relações de interdependência.

Não é uma questão de diferenças menores mas de diferentes caminhos

Há aqueles que sustentam que, na realidade, tais propostas têm como objetivo trazer para o debate a alternativa contra o capitalismo, hoje em crise; afirmam, por outro lado, que um novo ponto de vista crítico sobre uma base ideológica similar ajuda a ultrapassar os erros da construção socialista, trazendo uma nova aragem.

Tentámos mostrar, aqui, algumas questões em que os seguidores do “Socialismo do século XXI” convergem; contudo, é necessário afirmar que estamos perante uma proposta não estruturada que resulta de uma mescla de posições, nalguns casos baseadas em aspetos do marxismo, do cristianismo e das ideias do bolivarianismo, onde domina o ecletismo.

Tais posições expressam que a democracia participativa, as cooperativas e a autogestão poderão dar resposta ao “autoritarismo” da Ditadura do proletariado. Atiram, desta forma, “para cima da mesa” conceitos incoerentes com o propósito de deturpar a teoria comunista, fazendo-o, no entanto, sem argumentos: hoje, uma posição, amanhã, outra. Criaram-se várias confusões, como a que diz respeito à construção da “V Internacional”, inclusivamente com a participação de inimigos dos trabalhadores, como é o caso do Partido Revolucionário Institucional do México.

A luta contemporânea requer que se avance conjunta e firmemente à volta da bandeira vermelha do comunismo, pela transformação das condições materiais de vida e pela abolição das relações de produção burguesas, através do único caminho possível: o caminho revolucionário. A confusão não ajuda em absolutamente nada, sendo que a desordem de pontos de vista incoerentes apenas parece ter como objetivo retocar o capitalismo, numa operação irrealizável que tenta “humanizá-lo”. A classe operária, e não apenas na América latina, as forças com consciência de classe, assim como as forças revolucionárias, devem ter como objetivo fortificar os partidos comunistas que inscrevam nos seus princípios e programas, assim como na sua ação, a histórica experiência dos trabalhadores do mundo no derrube do capitalismo e na construção do socialismo, da Comuna de Paris à Revolução de Outubro.

É, finalmente, necessário concluir que o “Socialismo do século XXI” é uma posição estranha, e mesmo oposta, ao marxismo-leninismo e ao movimento comunista internacional, não apenas no que concerne às questões políticas, mas igualmente no que concerne aos assuntos ideológicos. É, assim, necessário que os partidos comunistas ergam a bandeira vermelha do desenvolvimento da consciência de classe, da organização de classe do proletariado e do conjunto dos trabalhadores explorados e oprimidos, da necessária construção de alianças com todos aqueles que pretendam derrubar o capitalismo, com um objetivo cuja força e validade se mantém desde a Revolução Socialista de 1917. Esta é uma tarefa da época em que vivemos – a do imperialismo e das revoluções proletárias –, não havendo espaço nem para “compromissos” nem para confusões.

Bibliografia
Marx, K.; Engels, F. Collected Works in two Tomes. Progress Editorial; Moscow; 1971
Marx, K.; Engels, F. The German ideology. Ediciones de Cultura Popular; México; 1979
Lenin, V.I.; Collected works in three tomes. Progress Editorial; Moscow; 1977.

Notas
1 Primeiro Secretário do Comité Central do Partido Comunista do México
2 Engels, F.; Do socialismo utópico ao socialismo científico; in Obras Escolhidas de Marx e Engels, em dois Tomos; Tomo II; Progress Editorial; Moscovo; 1971; Pg. 149
3 Partido Comunista da Grécia (KKE); Sobre os 90 anos da Grande Revolução Socialista de Outubro; em Proposta Comunista número 51; Edições do Partido Comunista dos Povos de Espanha; 2007; Pg.48.
4 Lenin, Vladimir Ilich; Destino histórico da doutrina de K. Marx; in Marx, Engels, Marxism; Edições de Línguas Estrangeiras; Moscovo; 1950; Pág. 77 e 78.
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FONTE: ODiário.info

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dentro do sistema capitalista não há saídas da crise favoráveis ao povo

Por Aleka Papariga



(Extractos da entrevista da secretária-geral do CC do KKE no programa matinal da estação de televisão ANT1, em 05/Janeiro/2012.) 



Aleksandra Papariga
“Não pode haver qualquer governo progressista que coexista com os monopólios, não só na economia mas por toda a parte.”

“Não podemos fixar uma data para a mudança do sistema político, não podemos estabelecer um período de um, dois, três anos porque isto depende da maioria do povo, não será um assunto só do KKE. Se o povo não tomar a decisão, isto não se verificará.”



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- O que propõe o KKE? É um partido que não procura o poder burguês. Ele não diz: votem por mim para formar um governo e as coisas serão diferentes. O que é que está a propor a fim de sairmos do impasse?

Quando dizemos ao povo que o sistema capitalista – e dizemos isso em relação ao sistema capitalista da Europa, que completou todo o ciclo – hoje já não pode proporcionar soluções, que já deu tudo o que tinha a dar, isto significa que eles não esperam que o KKE participe no sistema político burguês, num governo para gerir um sistema que nada pode proporcionar.

- Está a falar do derrube do sistema?

Naturalmente. 

- Não está interessada em participar numa formação governamental?

A questão não é se nos interessa. Isso será danoso para o povo. E nos depararemos com enfrentar uma grande contradição que é por um lado dizermos palavras-de-ordem em favor do povo e invocarmos os nossos mais de 90 anos de história e por outro lado sentarmo-nos e discutirmos acerca da abolição dos bónus de Natal e de Páscoa. Não é isto que queremos.

- Se o povo votar a favor e vos proporcionar um resultado importante, digo como hipótese, o que vocês lhe dirão? Que não governam porque o prejudicará, por que não podem governar dentro da estrutura do sistema dos capitalistas?

O povo grego, quando der uma tal maioria ao KKE, estará então determinado a lançar-se na batalha. Nós explicamos a nossa linha política plenamente. Não andamos a dizer que pode haver um governo que imponha duas ou três boas soluções. Isso é o que dizem outros partidos, os quais contam mentiras. E na minha opinião ou deveríamos dizer que os seus políticos e quadros são incompetentes, algo em que não acredito, ou estão conscientemente a dizer mentiras.

Se pudéssemos impedir as consequências da crise e resolver os problemas do povo através da participação num governo, nós o faríamos. Somos ousados e assumimos riscos. Mas isso é impossível. Deixe aqueles partidos que conversam acerca de governos progressistas de esquerda ou de centro-direita ou de centro-esquerda que nos expliquem: formam um governo. Mas no dia seguinte teriam de tratar de ainda mais memorandos, empréstimos, da Federação Helénica de Empresas, as federações patronais. Sabe o que está a acontecer agora? Mesmo quando num sector ou fábrica a luta faz pressão sobre o patrão e ele quer fazer um pequeno recuo, a federação dos industriais salta sobre ele e diz-lhe para não o fazer porque isto criará uma brecha em outras fábricas. Assim o trabalho não só enfrenta o seu próprio patrão como também os donos do capital e dos meios de produção como um todo.

- Eleições. Se olharmos para os inquéritos de opinião não teremos governos de um só partido. O que farão neste processo? Será mais uma vez o KKE a gritar e dizer que são os únicos que exprimem a esquerda?

Não dizemos isso desse modo. Procuramos exprimir objectivamente, através das nossas posições, os interesses da classe trabalhadora contemporânea e de uma ampla secção, não toda, dos auto-empregados e uma grande secção dos agricultores, não todos os agricultores. Nós definimos forças sociais. Apelamos ao trabalhador, tanto àqueles que votam na Nova Democracia como no PASOK. Nós vemos as forças sociais, porque quando você fala em termos de esquerda, direita, centro, hoje não está a dizer nada.

O povo não tem nada a perder; pode ao contrário ganhar alguma coisa se um governo fraco surgir das eleições. Quanto mais forte for o governo, mais duro e mais determinado será contra o povo.

Sejamos realistas acerca das próximas eleições. É possível que o povo saia mais forte e seja capaz de erguer obstáculos contra o trabalho do próximo governo. O povo não deveria ter medo. Se não for possível formar um governo de um partido eles chegarão a acordo uns com os outros. Eles já se prepararam para isso. Não ouçam o sr. Samaras, não ouçam o que o sr. Papandreu ou próximo líder do PASOK estão a dizer. Já há alguns que estão ansiosos por contribuir. Esperamos que haverá um momento em que a formação do governo será impossível e o povo intervirá. O que é importante é que não tenhamos um governo forte. Não podemos ter um governo a favor do povo.

- Isso é um pouco astucioso num sentido político. Diz que não pode haver qualquer governo progressista, excluindo a possibilidade de um governo não só do seu partido como também o do sr. Tsipras (Syriza) e do sr. Kouvelis (Esquerda Democrática).

Dizemos isso claramente. Não, não vamos por aí. 

- Então diz isso claramente.

Não pode haver qualquer governo progressista que coexista com os monopólios, não só na economia mas por toda a parte, que efectue negociações dentro da UE – porque é isso que todos eles estão a dizer; que alegadamente efectuarão uma negociação militante, tal coisa não pode vir a acontecer. Estas duas coisas são incompatíveis. Mas podemos ter um movimento forte após, no dia seguinte às eleições.

- As pessoas têm expectativas quanto a vocês. Elas dizem que o KKE pode ter uma das poucas oportunidades que alguma vez já teve no período pós ditadura de fazer sentir a sua presença com os votos do povo e querem ouvir algumas propostas do KKE para uma saída. Isto é o que as pessoas que não têm um relacionamento ideológico com o KKE estão a pedir. 

Temos uma proposta de saída. Não lhe direi o que já divulgamos numa versão impressa. Organizamos comícios, manifestações por toda a Grécia. Na verdade, isso não pode ser apresentado em um minuto. Se a pergunta é uma saída agora em que tudo permanece o mesmo e em que emergirá um governo que mudará tudo com decisões do parlamento, tal coisa não é possível. Isso quer dizer que não pode haver qualquer saída na estrutura do sistema actual.

- Está a falar do derrube do sistema?

Sim, mas isso não pode acontecer numa noite e com um único assalto. Dizemos o seguinte: em cada batalha o povo deve fazer progressos como militante, mesmo através de ganhos parciais. Não podemos descartar a possibilidade de um derrube radical nos próximos anos. O próprio povo decidirá sobre isto e ao mesmo tempo ele deve preparar-se e exercer pressão decisiva, impedindo o pior a alcançando ganhos. Não podemos fixar uma data para a mudança do sistema político, não podemos estabelecer um período de um, dois, três anos porque isto depende da maioria do povo, não será um assunto só do KKE. Se o povo não tomar a decisão, isto não se verificará.


FONTE: ODiari.info

Notas do Blog Mundo do Socialismo:
Aleksandra Papariga – Nasceu em 5/11/1945 em Atenas. Desde 1991 é Secretaria Geral do CC do Partido Comunista da Grécia  (KKE).
KKE  (Kommounistikó Kómma Elládas) - Partido Comunista da Grécia fundado em 1918.  
PASOK (Panhellenic Sosialistikó Kenema) – Movimento Socialista Pan-helênico, fundado em 1974 por Andréas Papandréu.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia Internacional da Mulher: por que 8 de março de 1857?

Por Aluizio Moreira

Movimento das Mulheres  Operárias

Comumente o dia 8 de março é reconhecido internacionalmente como Dia Internacional da Mulher, em homenagem às 129 mulheres assassinadas por seus patrões,  em 8 de março de 1857 no interior de uma fábrica têxtil em Nova York , nos Estados Unidos. O fato foi o epílogo de um movimento grevista deflagrado pelas mulheres operárias das fábricas de vestuário, que reivindicavam redução da jornada de trabalho, licença maternidade e melhores condições de trabalho.

Em agosto de 1910, mês da realização da Segunda Internacional que  aconteceu em Copenhague (Dinamarca), ocorreu também a IIª Conferencia Internacional das Mulheres Socialistas, na qual Clara Zetkin, representante comunista alemã na Conferencia, apresentando proposta da delegação das Mulheres Socialistas dos Estados Unidos, sugeriu que se incluísse no calendário de comemorações do movimento operário internacional, um dia em que se homenagearia a mulher operária socialista.

Isto é como costuma ser lembrado dia o dia 8 de março. Esses são os acontecimentos que geralmente teriam dado origem ao Dia Internacional da Mulher.

O que causa estranheza, é que não há nenhum documento publicado na época, nem em épocas posteriores, que confirmem os acontecimentos de Nova York no ano de 1857. Nem mesmo o jornal de grande circulação como era o Tribuna de Nova York, para o qual Karl Marx escreveu como colaborador até 1862, fez qualquer referencia aos assassinatos de 1857.

As obras que resgatam a História do Socialismo, do Movimento Operário e Comunismo Internacional, sobretudo nos capítulos reservados á Segunda Internacional que aconteceu de 1889 a 1914, nada apresentam acerca daqueles fatos de 1857.

No entanto há noticias de duas outras greves envolvendo o movimento de mulheres operárias que teriam acontecido  nos Estados Unidos, também em Nova Iorque, em outras datas: a primeira em 1909 uma greve geral das costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910. A segunda ocorrida em 29 de março de 1911, na fábrica Triangle Shirtwaist,  na qual noticiou-se a morte de 146 mulheres vitimas de um incêndio em uma fábrica têxtil, na sua maioria operárias imigrantes judias e italianas.

Considerando que somente em 1910, na IIª Conferencia das Mulheres Socialistas por intervenção de Clara Zetkin tenha-se definido um dia, não especificado,  por sinal, como data a ser comemorada em homenagem às mulheres operárias, tudo leva a crer que o acontecimento que marcaria aquela data, tenha sido a greve das costureiras de 1909/1910.

Clara Zetkin
O fato é que tanto  a primeira referência aos acontecimentos de 1857 quanto  à sugestão de Clara Zetkin, apareceram pela primeira vez em um artigo no Jornal L’Humanité do Partido Comunista Frances, publicado em 7 de março de 1955, que em poucas linhas, relata o incêndio provocado pelos patrões contra as operárias grevistas e, ao mesmo tempo,  a aprovação pela IIª Conferencia das Mulheres Socialistas, a pedido de Clara Zetkin, de se estabelecer o Dia Internacional da Mulher, sem definição de uma data. Ou seja, a versão de L’Humanité terminou por ser aceita definitivamente. (1)

Como na sugestão de Clara Zetkin não foi especificada uma data, vários países passaram a celebrar o Dia Internacional da Mulher em dias diferentes: no ano de 1911, na Suécia, comemorava-se no dia 01/03; no ano de  1912, nos EUA, no dia 25/02; em 1913  na Alemanha no dia 19/03; em 1913 na Rússia no dia 03/03; em 1914 na França no dia 09/03.

Em 1914, Clara Zetkin, à frente da  Secretaria Internacional da Mulher Socialista, órgão da Internacional Socialista,sugeriu uma data única para celebração do Dia Internacional da Mulher: 8 de março. O que foi aprovado. (2)

Só em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) oficializou a data e em 1977 a Unesco a reconheceu.

Uma conclusão transparece disso tudo: o Dia Internacional da Mulher, teve sua origem no movimento socialista, e particularmente  na luta das operárias socialistas dos fins do século XIX inicio do século XX.

Um grande equívoco (?)  histórico é realimentado até hoje: o fato das operárias queimadas vivas no interior de uma fábrica  de Nova Iorque em 8 de março 1857, ao que tudo indica, nunca existiu. (3)


Notas
(1) Qual teria sido a fonte do L’Humanité?
(2) Por que Clara Zetkin na Conferencia de 1910 tendo sugerido inicialmente o dia 1º de maio, em 1914 definiu-se por 8 de março?
(3) Existem estudiosos brasileiros e estrangeiros que dedicam-se à pesquisa sobre o movimento operário e socialista, e põem em dúvida as ocorrências de 1857. Entre esses estudiosos citamos Dolores Farias (UFCE), Naumi Vasconcelos (UFRJ), Renée Côté, Eva A. Blay, Liliane Kandel.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O socialismo do século XXI: os limites da democracia-liberal

Por Fernando Marcelino (*)    

Hoje é normal que os críticos do marxismo digam que o sistema social se alterou tanto desde os dias de Marx até hoje que suas idéias não são mais relevantes. Quase todo seu arcabouço conceitual foi “desconstruído” em diversas áreas e disciplinas específicas que procuram enfatizar como o pensamento marxiano é anacrônico diante dos “novos tempos”. As empresas descentralizadas e não-hierárquicas, a cultura do consumo, novas comunicações virtuais, tecnologias digitais e serviços “pós-industriais” demonstrariam que nossa era corresponde ao fim do marxismo. Estranhamente, estes críticos têm o entendimento implícito de que o capitalismo global é um sucesso triunfante e totalmente insuperável, que nosso mundo é assim mesmo e ponto final. Todas as tentativas socialistas de transformar o mundo teriam fracassado miseravelmente, dando a entender que, “cientificamente”, a superação do capital deve ser simplesmente impensável.

Chegamos a um ponto em que o capitalismo não é visto apenas como o único sistema econômico e política viável, mas que é impossível imaginar uma alternativa coerente para além do capital. Como disse Fredric Jameson, a experiência individual de tipo pós-moderna nos quer convencer que nosso próprio sistema ou modo de produção tem de ser eterno. Mesmo quando nossa inteligência sugira que essa impressão é, de fato, muito improvável, não existe nenhum roteiro plausível para a desintegração ou substituição do capitalismo. Por isso, “parece que hoje é mais fácil imaginar a deterioração total da terra e da natureza do que o colapso do capitalismo tardio; e talvez isso possa ser atribuído à debilidade de nossa imaginação” (Jameson, 1997, p. 10).

E onde se encontra a esquerda hoje? Zizek está certo quando enfatiza que a esquerda está passando pela experiência devastadora do fim de toda uma era para o movimento progressista, uma experiência que a obriga a reinventar as coordenadas básicas de seu projeto. Contudo, foi uma experiência homóloga a esta que deu origem ao leninismo. Estamos num período em que devemos “começar do começo”, reaprender que um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, o movimento de repetir o começo de novo e de novo... e aqui é exatamente onde estamos hoje, depois do “desastre obscuro” de 1989, o fim definitivo da época que começou com a Revolução de Outubro. Devemos, portanto, rejeitar a continuidade com aquilo que significou a esquerda nos últimos dois séculos. Embora momentos sublimes como o clímax jacobino da Revolução Francesa, a Revolução de Outubro e a Revolução Cultural permaneçam como um momento chave de nossas memórias, essas histórias chegaram ao fim, tudo deve ser repensado, devemos começar do ponto-zero.

Talvez a primeira pergunta nesta empreitada seja: o que o socialismo do século XXI não deve ser?

Considerando que devemos repensar o socialismo à luz das experiências do século XX, é preciso enfatizar que o socialismo do século XXI não é uma mecânica radicalização progressiva da democracia-liberal. Esta visão se aproxima não de Karl Marx, Lênin, Mao ou qualquer outro revolucionário, mas de Francis Fukuyama, o teórico que vislumbrou que, com a crise do “socialismo real” soviético, iríamos adentrar num período de “fim da história” e a democracia-liberal se tornaria o horizonte ontológico da humanidade.

Por mais paradoxal que seja isso, é normal escutar que a moeda corrente que circula hoje em todas as lutas e movimentos de libertação do mundo é o “desejo de democracia”. A expansão da democracia seria a única resposta para sair do estado de guerra e conflitos permanentes. Infelizmente, como pontua Zizek, sob este horizonte democrático-liberal as formas diversas de resistência ao capitalismo acabam por reproduzir os antagonismos que fundam o próprio capitalismo.

Essas “resistências” são formas de luta social que, sob a naturalização do Estado e do capital, acreditam que a democracia-liberal é espaço político vazio onde as multiplicidades de lutas poderiam conquistar diversas formas de barganha com uma suposta possibilidade de barrar os imperativos mais destrutivos do capitalismo. Essa crença se sustenta numa noção binária, entre democracia como força de resistência e globalização capitalista como força de opressão. A antiga idéia comunista do século XX sai de cena com a generalização dos novos “ideais democráticos” nos anos 1990 e 2000.

Para Alain Badiou, a democracia-liberal é hoje a principal organizadora do consenso. Em seu nome se reúne tanto o desmoronamento dos Estados socialistas, o suposto bem-estar dos nossos países e as cruzadas humanitárias do Ocidente. Tudo que é espontaneamente considerado como normal é democrático e assim vice-versa. Ela se encaixa no que ele chama de opinião autoritária: é proibido não ser democrata. Aqueles que não aspiram pela democracia são tidos supostamente como sujeitos patológicos.

Vale a impressão de Zizek: “Fidelidade ao consenso democrático” significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e, é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sócio-política diferente. Em suma, significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante. (...) No momento em que questionamos seriamente o consenso liberal existente, somos acusados de abandonar a objetividade científica em troca de posições ideológicas ultrapassadas. Esse é o ponto “leninista” do qual não se pode nem se deve abrir mão: hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada (Zizek, 2005, p. 173, 174).

Nesse ponto não podemos mais nos enganar sobre o caráter estrutural que a democracia desempenha na sustentação da ordem simbólica capitalista. Hoje, o inimigo não é o Império e sim a democracia: “o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo” (Zizek, 2008, p. 420).

A expectativa angustiada de revolucionar o capitalismo com a exigência desesperada de fazer “alguma coisa” sob o horizonte democrático-liberal é falsa. A vontade de mudança revolucionária surge como uma ânsia, como um “não posso agir de outro modo”, ou não tem valor. A revolução autêntica realiza-se, por definição, como um “tem de”, não algo que “devamos fazer”, como um ideal pelo qual nos esforçamos para atingir, mas algo que é impossível não fazer, já que não podemos agir de outro modo. Estas formas de auto-sabotagem da esquerda ocorrem sob a forma de um “obedecer ao capital sem saber”. As sanções contra o comunismo e a revolução (“a história mostra que todas as revoluções acabaram em totalitarismo”, “não existem mais agentes sociais que fariam uma revolução comunista”, “o poder global é tão fragmentado que é impossível lutar contra ele”, “a luta por uma democracia de alta intensidade é o que nos resta” etc.) acabam por se distanciar de qualquer objetivo que vá além dos limites do próprio capitalismo, contendo, dessa forma, sua ação nos meandros da democracia-liberal, repetindo de forma ininterrupta o “fim da história” – por mais que o próprio Fukuyama já fale de fim do fim da história.

Até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital – o Estado liberal-democrático com sua representação parlamentar e suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de “justiça e imparcialidade” - fracassou em todas as promessas que a auto-legitimavam. Contra a postura fetichista que fala que o Estado se tornou um lugar vazio para que democraticamente todos os movimentos civis lutem pela hegemonia social, talvez seja necessário, mais do que nunca, avaliar novamente a apropriação revolucionária do Estado.

Afinal, por que aceitar que esse terreno costumeiramente considerado “burocrático”, “infértil” e “lento” deve ser deixado para o inimigo tão facilmente? Zizek também nos pergunta: por que a esquerda deveria respeitar sempre e incondicionalmente as regras formais do jogo democrático? Por que não deveria, em algumas circunstâncias, pelo menos, questionar a legitimidade do resultado de um procedimento democrático formal?

É claro que não estamos defendendo aquela parte da esquerda que muitas vezes ignora a democracia-liberal, considerando-a como uma mera fachada, cuja substituição pelo fascismo ou por uma ditadura militar é uma questão menor. É claro que, sendo necessariamente limitada e limitadora, no interior do capitalismo, a democracia não deve ser venerada ou fetichizada pelos socialistas e é de se lastimar que muitos socialistas transformem-se hoje, na prática, em zelosos sacerdotes da democracia-liberal. De qualquer forma, o valor da democracia política na ordem do capital reside nas possibilidades abertas para os trabalhadores e camadas populares se organizarem melhor politicamente e combaterem a hegemonia cultural e ideológica da burguesia (inclusive o consenso da via democrática de transformação do capitalismo).

A tarefa dos socialistas é fazer uma crítica permanente às limitações e falhas da democracia burguesa, à sua estreiteza e seu formalismo, às suas tendências e práticas autoritárias e reacionárias. Mais do que isso, a crítica socialista deve revelar sempre o caráter substantivamente não-democrático da sociedade burguesa: não são apenas os arranjos políticos que devem ser alvos de críticas sérias e convincentes, mas também a forma de exercício do poder arbitrário em todos os aspectos da vida - nas fábricas, canteiros de obras, universidades, na burocracia, nos escritórios, nas escolas, onde quer que o poder afete as pessoas. Nossa tarefa é questionar a crença generalizada na forma democrática da luta contra o capitalismo, apontando novas formas de ação coletiva.


(*) Fernando Marcelino é analista internacional.

FONTE: Correio da Cidadania