terça-feira, 23 de julho de 2013

A desmontagem da "Democracia Representativa"

 Por Miguel Urbano Rodrigues

Jean Salem, com o seu livro "Élections, piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie?" [1] dá um contributo valioso para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. Ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.



Capa de "Eleições, armadilhas para
tolos"
Élection piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie? [1] de Jean Salem, é uma contribuição valiosa para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. 

Salem, professor de História da Filosofia na Sorbonne, conhecedor profundo do pensamento dos materialistas gregos, consegue numa linguagem muito acessível encaminhar os leitores para a reflexão sobre problemas inseparáveis da crise global que está encaminhando a humanidade para o abismo. 

No seu livro Lénine et la Révolution [2] , recorrendo a seis teses do grande revolucionário russo, demonstrou que elas não perderam actualidade na luta contra a barbárie capitalista. Neste ensaio ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital. 

AS DINASTIAS REPUBLICANAS 

Filho de Henri Alleg, Jean Salem herdou do pai o talento de usar a ironia com eficácia na denúncia de facetas pouco lembradas do drama e da comédia politica. Comentando a proliferação das "dinastias electivas" chama a atenção num dos primeiros capítulos para o estranho fenómeno da tendência dinástica em regimes formalmente republicanos. Nos EUA, George Bush pai preparou George Bush filho para chegar à Casa Branca após o intermezzo de Clinton. No Haiti Papa Doc Duvalier teve como sucessor Baby Doc Duvalier. Na Nicarágua foi necessária uma revolução para dar fim à dinastia dos Somoza. No Paquistão Benazir Butto sucedeu a seu pai Ali Butho e o marido, Asif Zardari tornou-se presidente quando a assassinaram. O filho, Bilwal, é o herdeiro provável. Na Índia de Indira Gandhi, filha de Jawaharlal Nehru, o sucessor foi o filho, Rajiv, também assassinado e Sonia, a viúva, uma italiana, somente não foi primeira-ministra porque recusou. Na Coreia do Norte, Kim il Jong herdou a Presidência do pai, Kim Il Sung e o neto deste, Kim Jong Un governa agora o país. Na Colômbia, duas famílias, os Gomez e os Lopez têm vocação dinástica e o actual presidente, Juan Manuel Santos, orgulha-se do fundador da estirpe presidencial, Eduardo Santos. No Togo, Fauce Gnassingbé Éyadmé recebeu o poder do pai Gnassigbé Eyedema. No Gabão, Ali Ben Bongo governa com escassa contestação após o pai, Gongo Omar. Na República Popular do Congo, quando Laurent Desiré Kabila faleceu, o poder foi atribuído ao filho, Joseph Kabila. No Egipto a insurreição popular impediu que Osni Mubarak colocasse no poder o filho Gamal. 

Todos definiram nos seus países a forma de governo como democrática. 

O SUFRÁGIO UNIVERSAL 

O sufrágio universal foi instituído por Napoleão III depois de ter liquidado a República. Não para entregar o poder ao povo, mas como sublinhou Lénine em O Estado e a Revolução – para "o utilizar como instrumento de dominação da burguesia". 

Bismark imitou-o depois de ampliar os privilégios dos latifundiários prussianos. Milhões de eleitores acreditaram ingenuamente que lhes fora atribuído um poder real, quando na realidade o sufrágio universal serviu para reforçar o despotismo. 

Salem recorda que na sua crítica ao parlamentarismo Lénine nunca defendeu o boicote das eleições. Os comunistas, na sua opinião, deviam estar presentes na DUMA (o parlamento do Czar), mas para, vacinados contra o cretinismo parlamentar, defenderem ali os interesses dos trabalhadores. 

Para ele, a democracia capitalista limitava-se a autorizar os oprimidos de três em três ou de seis em seis anos a decidir que elementos da classe dominante os representariam, e calcaria aos pés os seus interesses no Legislativo. Nada mais. Foi igualmente em O Estado e a Revolução – escrito durante a Revolução de Fevereiro de 17 – que Lénine chamou a atenção para a realidade: a verdadeira tarefa do Estado falsamente democrático é executada nos bastidores e não através do Parlamento. Este servia fundamentalmente para enganar o povo e conferir legitimidade à ditadura de classe. 

Transcorrido um século, o mundo mudou muito, mas não a função dos Parlamentos. O seu papel resume-se "a avalisar o que foi decidido sem eles". 

Jean Salem recorda o que se passou com o projecto da Constituição Europeia para desmascarar o conceito de democracia do Estado burguês. 

Quando o povo francês em 2005 votou contra o texto que impunha à União Europeia uma Constituição que institucionalizava o capitalismo, soou o alarme no mundo do capital. E o medo alastrou dois meses depois, quando os eleitores da Holanda num referendo similar rejeitaram também o projecto. 

Porventura a burguesia aceitou o veredicto popular? Não. 

Os governos no poder mudaram o título do Tratado Constitucional, introduziram-lhe alterações cosméticas, mas, em vez de o submeterem novamente à votação do povo, transferiram para os parlamentos a decisão. O desfecho foi o esperado: em França e na Holanda o projecto recauchutado foi facilmente aprovado em 2008. 

Inesperadamente, porém, os irlandeses tinham, em referendo, recusado o mostrengo constitucional. A pressão e a chantagem exercidas sobre aquele povo foram tamanhas que, meses depois, noutro referendo, o Não passou a Sim! 

A partir de então não houve mais referendos em países da União Europeia e os parlamentos aprovaram docilmente o famigerado Tratado. Em Portugal, o governo de Sócrates engavetou para o efeito o compromisso de confiar ao povo a decisão. 

A dualidade de critérios sobre o carácter democrático de "eleições livres" é enfatizada por Jean Salem a propósito do que ocorreu na Palestina em 2006. Ao território afluíram observadores internacionais de dezenas de países. Os EUA os governos da UE tinham como certa a vitoria das forças de Mamoud Abbas e da sua corrupta Autoridade Palestina, submissa às imposições de Washington e de Israel. Mas, contrariando as sondagens, o Hamas obteve uma vitória límpida. A reacção do imperialismo foi imediata. Aplicaram sanções económicas e politicas a Gaza, bastião do Hamas. Não perdoaram aos palestinos terem desafiado o Ocidente. E em 2008 Israel invadiu a Faixa de Gaza, cometendo crimes que indignaram a humanidade. 

O binómio EUA-União Europeia orgulha-se de ser o guardião da democracia, declarando-se sempre disponível para condenar aqueles que a violam. 

Mas admite excepções. Quando Ieltsin ordenou o assalto sangrento ao Parlamento russo em 1993 (150 mortos e 1000 feridos) o Washington Post escreveu: "Aprovação geral para a acção de força de Ieltsin, encarada como vitória da democracia". O secretário de Estado Warren Christopher correu a Moscovo para apoiar o golpe porque se tratava de "circunstâncias excepcionais". 

O PODER REAL 

Comparando a política, tal como é hoje nos países industrializados, a um teatro de sombras, Jean Salem, sempre didáctico, coloca o dedo na ferida. 

As pompas oratórias confundem, mas não alteram o movimento da história. O Poder real não está na sala oval da Casa Branca nem em Bruxelas. Quem toma as decisões importantes é a Finança, o Capital, mais exactamente aqueles que representam o deus dinheiro: o Banco Mundial, o FMI, a OMC, os instrumentos de um poder "monográfico e tecnocrático", como diz o italiano Sabino Acquaviva, agentes de uma soberania transnacional, incontrolável, desumanizada. 

Os capítulos dedicados por Salem ao funcionamento da farsa democrática permitem ao leitor assistir a espectáculos de teatro de absurdo. 

Não revela coisas que não sejam do domínio público. Mas, ao recordar a rodagem da máquina apodrecida do sistema, aviva a repulsa que a engrenagem do capitalismo inspira hoje a uma grande parte da humanidade. Na Europa é particularmente grotesco o debate entre a direita assumida e a social-democracia. Ambos quando governam praticam políticas neoliberais. Somente se diferenciam porque os social-democratas acreditam administrar melhor o capitalismo. 

O CIRCO ELEITORAL 

Nada ridiculariza mais o discurso sobre a grandeza da democracia americana do que um facto insólito, confirmado pelas estatísticas: todos os presidentes dos EUA são levados à Casa Branca por uma pequena minoria de eleitores: em média 25% dos inscritos. Assim aconteceu com Reagan, Carter, Bush pai, Clinton, Bush filho. Barack Obama, olhado por Mário Soares como esperança da humanidade, recebeu 30%, um recorde. 

O sistema é perverso. Com "grandes eleitores" a representarem os votantes, as primárias são condicionadas pelo dinheiro acumulado pelos candidatos em campanhas milionárias, e as convenções que decidem qual o escolhido transcorrem em atmosfera de circo. 

Em 2000, Bush filho obteve menos votos do que Al Gore, as fraudes na Florida e noutros estados foram transparentes, houve recontagem, mas, após largos dias, Bush foi proclamado presidente após intervenção do Supremo Tribunal. Assim funciona a "grande democracia americana" … 

O modelo é repulsivo, mas contaminou a Europa. 

Em Portugal, o PS e o PSD esforçam-se por o aplicar como bons discípulos. Nos programas prometem obras faraónicas, benefícios sociais, aumentos salariais, centenas de milhares de empregos. O discurso, a postura, os gestos, a voz, o penteado, a roupa dos candidatos a primeiro-ministro são estudados e impostos por especialistas contratados, alguns estrangeiros. 

Uma vez nomeado, o primeiro-ministro do Partido vencedor engaveta todas as promessas e desenvolve uma política reaccionária com elas incompatíveis. 

Os governantes, aplaudidos pelo coro de epígonos, repetem diariamente, monocordicamente, que o regime é democrático, o parlamento a expressão da vontade popular – e os media carimbam a mentira. 

Mentem conscientemente. Sabem que a chamada democracia representativa obedece no seu funcionamento a regras concebidas para promover a desigualdade, beneficiar o grande capital e manter na pobreza a maioria da população. 

O sistema não tem conserto possível. Não pode ser reformado, tem de ser destruído. A burguesia não entrega o poder através de eleições. 

Que fazer, então? 

"O que é preciso mudar, na realidade, é o conjunto" – afirma Jean Salem no final do seu belo e lúcido livro – um sistema no qual o omnipresente modelo do mercado é suficientemente repugnante para que analistas mais ou menos desinteressados tenham transformado o cidadão-eleitor num vulgar consumidor da "escolha tradicional (…) um sistema em cujo cerne estão inscritas a desigualdade, a falta de carácter, a violência, a guerra". 

Jean Salem escreveu um livro muito importante em que arranca a máscara à falsa democracia imposta aos povos pelo capital. 


Notas: 

1- Jean Salem, Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie , Flammarion, Paris, 2012, ISBN: 978-2-08-124879-3 
2- Jean Salem, Lenine e a Revolução, Editorial Avante, Lisboa, 2005 



FONTE: Resistir.info

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Poder Popular e Democracia

Por Aluizio Moreira


É inegável a importância das manifestações ocorridas a partir de 2011, envolvendo várias cidades em vários países em todo mundo, que os meios de comunicação, bem ou mal, não pouparam espaço para noticiá-las. Importância não só pelo número de participantes que foram às ruas, como pela característica e significado daquelas mobilizações.

Não iremos discutir aqui o que já foi objeto de observação e comentários de vários analistas que se debruçaram sobre algumas de suas características: mobilização de massa; ausência de liderança de um partido politico na organização dos movimentos; posicionamento contra as necessidades mais elementares da população como emprego, saúde, educação; duras criticas aos privilégios do capital financeiro e à corrupção; demonstração de descontentamento diante da omissão e inoperância dos representantes políticos nos parlamentos burgueses.

É especificamente sobre este último ponto que gostaríamos de apresentar algumas observações, a fim de retomarmos um debate que não é novo, mas que as manifestações populares desses últimos anos, recolocam na ordem do dia: a questão do poder popular e da democracia representativa (1). 

Ora, se existe a concordância de que as referidas mobilizações, entre outras coisas, significam a existência de um abismo entre os cidadãos e seus representantes nos parlamentos, indicam um antagonismo entre a democracia praticada pela sociedade politica e a reivindicada pela sociedade civil, como esse impasse poderá ser resolvido? Aprimorando a democracia existente ou mudando a estrutura do poder?
   
Após o fim da Segunda Guerra Mundial com a derrota do nazi-fascismo e paralelamente à expansão de sociedades comunistas na Europa do Leste e Ásia, a democracia ocidental, como contraponto, passou a ser o modelo “inquestionável”, “indiscutível”, de forma de governo, como única condição para a realização da cidadania em toda sua dimensão. 

A democracia representativa, sobretudo a partir da década de 80 do século passado -- com o agravamento das crises verificadas nas sociedades do socialismo real iniciadas com as denúncias dos crimes de Stalin em 1956, a chamada Revolução da Hungria” no mesmo ano, a “Primavera de Praga” em 1968 -- passa a ter uma grande aceitação no mundo ocidental. 

Tão grande é a aceitação da democracia pluripartidária, que a esquerda e  até mesmo partidos comunistas abandonam seus programas revolucionários de construção de sociedades socialistas, tornam-se democrático-parlamentares, passando a disputar uma vaga nos parlamentos burgueses, colaborando com a elite politica para fazer “avançar” a democracia representativa. 

Esquecem a esquerda e certos partidos comunistas “entusiasmados” e “esperançosos” com o poder burguês, que a classe dominante pode até fazer concessões às “vozes vindas das ruas”, mas há um limite possível para as mudanças econômica, social e politica por via parlamentar. Ou seja, não haveria como se aprofundar as conquistas do povo, nem tampouco estabelecer novas regras de coexistência entre as classes com interesses “diametralmente opostos”,  sem destruir o sistema democrático  representativo. 

Como tentativa de minimizar as contradições e antagonismos entre essa democracia e a sociedade civil, os governos procuram ampliar o nível de participação dos cidadãos em determinadas ações de caráter público. E como dispositivo complementar, institui-se a forma participativa que se exerceria através do plebiscito, do referendo e por iniciativa popular (2).

Até que ponto esse poder de deliberação por esses meios, realmente nos conduziria a uma ruptura com o sistema de dominação do poder politico e do facciosismo do Estado próprios da democracia representativa?

Ao ponto que chegamos e em termos de expectativas não resolvidas pela democracia ocidental, não se trata apenas de podermos continuar usando o voto para elegermos nossos representantes no parlamento, sob a orientação politico-ideológica de um ou outro partido politico porta voz de interesses de setores da classe dominante, e termos como “consolo”, a garantia constitucional de sermos convocados para um plebiscito ou referendo sobre ações politicas do Governo.

Daí porquê acharmos que é fundamental a criação de mecanismos a serem exercidos pela sociedade civil sobre a administração pública, se alicerçando no principio de que a legitimidade das ações politicas respalda-se na deliberação dos cidadãos livres e iguais, sem intermediações, ou se preferem, sem representações. 

A democracia no sentido mais radical do termo não se exerce por delegação. Para o seu exercício, os cidadãos devem constituir-se em suas próprias organizações, seja em comunidades, associações ou conselhos, aos níveis municipal, estadual e federativo, que funcionarão como órgãos de administração pública, de deliberação, fiscalização e controle, organizações que comporiam outro tipo de Estado. 


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Notas:
(1) Sob essa forma, o povo expressaria sua vontade através de eleições de representantes que tomariam decisões em nome daqueles que os elegeram. 
(2) Alias a Constituição Brasileira no seu Art. 14 prevê que a “soberania popular” se exercerá através do plebiscito, referendo e iniciativa popular.

domingo, 21 de julho de 2013

O conceito de Poder Popular em Lênin e Trotsky

Boletim da FPMR (Frente Patriotica Manuel Rodriguez) 


Muito se fala e se debate do poder popular nos diferentes momentos da luta, tanto no auge do confronto de classe, como nos períodos de dispersão. Debate certamente delimitado na atualidade a um pequeno círculo no Chile, no entanto, o que preocupa desta situação é que se desconhece por parte de muitos companheiros e organizações o conceito histórico de poder popular. Mais do que isso, se assume a fictícia via de construção do poder popular (antecedente à destruição do estado burguês) como programa, como tática de uma edificação política, como se essa construção fosse produto da própria vontade, como se bastasse a simples decisão de alguns para instalar o poder duplo; sem lugar a dúvidas, como diria Lênin, se confunde a análise científica de uma situação concreta com a agitação política.

Esse desconhecimento ou posição consciente deriva, num geral a deformações reformistas, por exemplo, que não é necessário na atualidade uma estratégia que contemple a tomada do poder, senão que "o poder se construa" e que em um processo "natural" o crescimento deste novo poder irá ocupando os espaços da sociedade.

Assume-se que toda construção social é já embrionariamente o poder dual confundindo desta maneira o que é uma correlação de forças para a transformação social, com o que é o poder popular em concreto. Inclusive em alguns aparece uma correlação de forças para a transformação social, com o que é o poder popular concretamente. Inclusive em alguns aparece a noção de que a construção de poder popular deve estar desprovida de confronto, caminhando por um canal paralelo e asséptico, e que está sempre fora, na margem do sistema, e que não se mancha nunca com o poder do Estado burguês, desconhecendo dessa forma os elementos básicos da dialética marxista.

Para indagar sobre o conceito de poder popular analisaremos duas linhas teóricas que se tem confrontado historicamente, quer dizer, a de Lênin e a de Trotski, sem pretender por certo esgotar o tema, senão com o mero propósito de ir aproximando-se destes conceitos deste ponto de vista mais científico.

Similaridade entre Trotski e Lênin

"O duplo poder se manifesta na existência de dois governos: um é o governo principal, o verdadeiro, o real governo da burguesia: o governo provisório de Lyon e Cia., que tem em suas mãos todos os recursos do poder; o outro é um governo suplementar ou paralelo, de "controle", composto pelos Sovietes, de deputado e trabalhadores e soldados de Petrogrado, que não tem em suas mãos nenhum recurso do poder, mas que descansa diretamente no apoio da maioria indiscutível e absoluta do povo, nos trabalhadores e nos soldados armados". (Lênin, As tarefas do proletariado em nossa revolução - TOMO XXIV )

"A preparação histórica da revolução conduz, no período pré-revolucionário, uma situação na qual a classe chamada a implementar um novo sistema social, mas ainda não é dona do país, reúne de fato em suas mãos uma parte considerável do poder do Estado, enquanto o aparato oficial deste último segue ainda nas mãos de seus antigos detentores. Daqui parte a dualidade de poderes de toda a revolução". (Trotski, História da Revolução Russa).

§ Ambos consideram a dualidade de poderes como um fenômeno transitório, ainda que, como veremos mais adiante diferem no caráter obrigatório;

§ Coincidem no paralelismo e na coexistência por um momento de ambos os poderes;

§ O poder duplo é um feito de fato e não um feito legal, o poder do proletariado é uma ação revolucionária;

§ A temporalidade é inevitável na dualidade do poder, num fenômeno anômalo já que a unidade é um comportamento "natural" do Estado;

§ Não é um poder dividido, senão que se trata de dois poderes em disputa, cada poder está ocupado por uma classe organizada.

As diferenças

Trotski não vê a dualidade de poderes em um tempo ou lugar histórico determinado, nem tampouco o relaciona a algum tipo específico de revolução. O vê como um fenômeno característico de toda crise social e não próprio da revolução russa de 1917, fala da "dualidade de poderes de toda revolução" (A história da Revolução Russa, Trotski). A dualidade de poderes seria segundo Trotski, "um episódio característico da luta entre os regimes" (A história da Revolução Russa, Trotski). Portanto, vê dualidade de poderes nas revoluções burguesas da França e Inglaterra, quer dizer, entre o poder feudal e o poder burguês, na França entre a assembléia constituinte (órgão da burguesia) e a monarquia, na Inglaterra, entre o parlamento e o Rei.

Para Trotski a dualidade de poderes seria uma lei social, colocando as coisas como se nenhum processo revolucionário pudesse suceder a margem da existência de alguma forma de dualidade de poderes.

A transformação, para Lênin, seria a teoria da excepcionalidade do poder dual, se descarta absolutamente  essa transtemporalidade, não somente não haveria existido nunca uma situação similar na história, senão incluído "ninguém pensou previamente, nem poderia pensar em um duplo poder" (O duplo poder TOMO XXIV).

Lênin define a dualidade de poderes como uma anomalia ou enfermidade que se apresenta no seio do poder do Estado Russo. A dualidade de poderes são dois tipos de estado que se desenvolvem de um modo simultâneo no interior dos mesmos elementos essenciais, o que deveria ocorrer sucessivamente ocorre no entanto de maneira paralela, de um modo anormal, sua unidade é uma contradição, ou incompatibilidade. A dualidade de poderes é, portanto, um desenvolvimento essencialmente antagônico. Trata-se de uma "peculiaridade essencial de nossa revolução", o "entrecruzamento de duas ditaduras" consistiria a surpresa da revolução russa (Lênin, As tarefas do proletariado em nossa revolução).

A aproximação no tempo, a contemporaneidade, o paralelismo entre a revolução democrático-burguesa e a revolução socialista é o característico da revolução Russa. É dizer "a dominação da burguesia poderia e deveria ser seguida pela dominação do proletariado e o campesinato por sua ditadura. Na vida real, entretanto, as coisas já sucederam de um modo diferente; se produziu um entrelaçamento de um com o outro extremamente original, novo, sem precedentes". (Lênin, Cartas sobre tática, TOMO XXIV). No entanto "Tal entrelaçamento não pode durar muito. Em um mesmo Estado não podem existir dois poderes. Um deles está destinado a desaparecer". (Lênin, As tarefas do proletariado em nossa revolução).

Em resumo, todo o anterior teria sua explicação produto de que na Rússia num mesmo momento e lugar surgiu uma série de contradições:

1. Caráter tardio da revolução burguesa na Rússia, o proletariado logo não se alienou pela pobreza de conquistas da burguesia;
2. Num mesmo momento se encontraram o melhor e mais avançado proletariado da Europa e a mais atrasada das burguesias;
3. A contemporaneidade da revolução burguesa e socialista;
4. Entrelaçamento de duas ditaduras. Estas características segundo Lênin seriam específicas e exclusivas da realidade russa, a dualidade de poder então seria um fenômeno que dificilmente se repetiria em outra realidade do planeta.

COMO CONCLUSÃO

Ou seja, a noção que mais tem imperado no campo da esquerda é a trotskista, que em sua expressão mais exacerbada (portanto, afastada inclusive da raiz de Trotski) cai irremediavelmente no voluntarismo, no movimentismo, no basismo. Aparece o poder popular como um capricho individualista e não como expressão das contradições da luta específica e concreta, que coloca a organização revolucionária e a classe trabalhadora frente à problemática da dualidade de poder. Sob esse enfoque o poder popular se expressa como uma tarefa que deve ser executada sob qualquer circunstancia, realidade ou momento histórico. Em transformação o conceito leninista de poder popular, se define este fenômeno como excepcional da revolução Russa (estamos falando obviamente de uma realidade que ocorre frente à tomada de poder, já que depois da tomada do poder pelas forças revolucionárias e a classe trabalhadora a construção da sociedade socialista se baseia fundamentalmente no poder popular como forma e tipo de Estado).

Então, se é uma exceção produto das particulares contradições de uma época, a tarefa das forças populares não é a de tratar de construir um tão desejado poder popular, senão a de levantar uma correlação de forças capaz de derrotar a burguesia e arrancá-la do poder, como condição básica para a construção de um novo tipo de Estado, como diria Engels, a "comuna".

Tradução: Ceres Luisa Antunes Hadich
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Nota de Mundo do Socialismo:

A Frente Patriótica Manuel Rodriguez (FPMR), organização comunista chilena, fundada em 1983 por integrantes do  Partido Comunista do Chile (PCCh),que optou pela luta armada para enfrentamento da ditadura de Augusto Pinochet. Como retorno do chile à NORMALIDADE democrata em 1991 o FPMR renunciou à luta armada, integrando-se no sistema parlamentar chileno, fazendo parte da coalizão de esquerda.


FONTE:  Patrialivre

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Espionagem global: ‘A liberdade de cada cidadão está ameaçada’

Carta Maior

Duas ONGs com sede na França, a Liga de Direitos Humanos (LDH) e a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), ingressaram com uma ação junto à Procuradoria da República acusando a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) e várias empresas transnacionais de internet: Google, Yahoo!, Facebook, Microsoft, Paltalk, Skype, Youtube, AOL e Apple. As duas ONGs consideram que essas empresas estão implicadas no esquema de espionagem mundial que Washington organizou por meio do sistema Prisma e cuja metodologia foi revelada pelo ex-agente da CIA e da NSA, Edward Snowden. Até agora é a única ação impetrada na Europa contra os Estados Unidos ou suas empresas. Todo o sistema político do Velho Continente se escondeu como um coelho assustado ante a prepotência tecnológica da Casa Branca.

Cúmulo do ridículo e da servidão, o governo “socialista” do presidente François Hollande impediu, junto com Itália, Espanha e Portugal, o sobrevoo pelo território francês do avião do presidente boliviano Evo Morales: algum serviço secreto inepto fez circular a informação segundo a qual Edward Snowden estava no avião de Evo Morales. Mais vergonhoso é o papel que desempenhou a imprensa diante de uma violação tão colonial do direito internacional. Ironias, títulos como “os latinos estão enojados”, ou boicote de informação marcaram a cobertura deste escândalo. É possível contar nos dedos de uma mão os jornais franceses que mencionaram a última cúpula do Mercosul e a convocação dos embaixadores dos países envolvidos no bloqueio do avião.

Em entrevista à Carta Maior, realizada em Paris, o advogado Patrick Baudouin, presidente de honra da FIDH, explica as bases da ação judicial na França e analisa tanto a prepotência norte-americana como o perfil de lacaio de Washington adotado pela União Europeia.

Carta MaiorEste episódio de espionagem planetária, violação do direito internacional contra um chefe de Estado e submissão da Europa é um caso de concurso. No entanto, apesar de sua amplitude e de suas múltiplas conexões, só vocês recorreram à justiça contra os envolvidos.

Patrick Baudouin – É assombroso, de fato, que a nossa seja a primeira ação apresentada. Decidimos iniciar o processo porque as revelações de Snowden permitiram descobrir a existência de um sistema de vigilância generalizada em escala planetária através da internet. A NSA, a CIA e o FBI podem ingressar nos programas dos gigantes da informática, Como Google, Yahoo!, Facebook, Microsoft e outros e recolher os dados. Isso permite que conheçam o nome do autor, do destinatário e o conteúdo das mensagens. Mas isso não se limita ao território norte-americano. Os Estados Unidos se julgam no direito de colocar em prática esse sistema em todo o mundo, na Europa, na América Latina, na Ásia. Isso é intolerável porque se opõe totalmente às legislações nacionais. O que está em jogo aqui é a liberdade do indivíduo. Nosso processo acusa a Agência Nacional de Segurança, a NSA, a CIA e, por cumplicidade, também os gigantes da informática. Essas empresas não podem ignorar o que se passa. Google, Facebook e os demais grupos dizem hoje que talvez tenha ocorrido espionagem mesmo, mas sem que eles se dessem conta disso. É uma piada! A base legal da ação é constituída pelas revelações de Snowden. O mais incrível está no fato de que os próprios responsáveis por esses abusos não questionam as informações sobre o ocorrido. Os EUA não negaram a veracidade das revelações. Pelo contrário, Washington disse: “senhor Snowden, você é culpado por ter dito a verdade. E nós não queremos que essa verdade seja dita”.

CMAs cifras sobre o volume de dados coletados é digna de ficção científica: são bilhões de informações.

PB – Desde que o sistema Prisma foi colocado em funcionamento houve 97 bilhões de comunicações controladas em todo o mundo. Entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013, na França, foram controladas dois milhões de comunicações. O que nós queremos saber com nossa ação é quantas dessas comunicações foram utilizadas e com que finalidade. O escandaloso não reside em ativar um sistema de vigilância em torno de pessoas ligadas ao terrorismo ou ao crime organizado. Todo Estado democrático deve buscar se proteger e ter sistemas de controle. O escandaloso está em que, em nome dessa luta contra o terrorismo, se violaram todas as regras. Em vez de controlar as pessoas que podem ser perigosas se controlou todo mundo, sem distinção. A liberdade de cada cidadão ficou, assim, questionada. Podemos imaginar o que ocorreria se governos ditatoriais tivessem acesso a esses instrumentos e dados. Nada nos garante que, amanhã, na Espanha ou na França, não haja um governo de extrema direita, autoritário, ditatorial, o qual vai recorrer a essa informação para controlar a todos os indivíduos. Na Líbia vimos que o Coronel Kadafi tinha um sistema assim que permitiu com que prendesse e torturasse opositores. Nós buscamos precisamente limitar a amplitude desses sistemas. Queremos que se tome consciência do risco que esses dispositivos representam para a liberdade individual.

CMEm meio a este escândalo, o Le Monde revelou que a França também tinha um sistema de vigilância semelhante.

PB – É verdade. Os chamados Estados democráticos reagiram timidamente quando as revelações de Snowden vieram a público. Podemos nos perguntar se essa tímida reação não se deve precisamente ao fato de que os responsáveis dessas democracias não se sentem um pouco responsáveis porque agem da mesma maneira.

CM – A América Latina também foi objeto dessa mesma espionagem. Estamos de novo frente a um império ao qual ninguém pode ser opor e que, com sua potência tecnológica, atropela todo o planeta?

PB – O imperialismo norte-americano é uma prática bem conhecida na América Latina. E justamente o que provocou um choque na Europa Ocidental foi que essa história teve o caráter de um descobrimento. Na América Latina o imperialismo e suas consequências são uma constante. Na Europa, não. Há algo que pode ser vantajoso em tudo isso: que a mobilização e a reação se ativem em todas as partes contra o imperialismo norte-americano. Contra o que alguns acreditam, não há nenhum ocaso do imperialismo norte-americano. Creio, ao contrário, que o poder dos EUA nunca foi tão importante como hoje. Desde os atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos passaram por cima de todas as regras e leis. Há vários artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que foram violados de maneira constante e com total impunidade. É isso que queremos denunciar. E esperamos que em outros países haja outras ONGs ou outras pessoas que entrem na Justiça contra os responsáveis por esse esquema de espionagem.

CM A Europa, em vez de agir contra os Estados Unidos, terminou por castigar a América Latina quando bloqueou o avião do presidente boliviano. É uma forma de abuso colonial e de servidão diante da Casa Branca.

PB – Sim, absolutamente. Se este episódio fosse um filme seria uma comédia, mas não é. Trata-se de política internacional. Entre os países que impediram o sobrevoo de seu território, a França acabou se expondo ao ridículo. Houve, de fato, um medo imediato de incomodar aos Estados Unidos e provocar medidas de retaliação. Para evitar um problema com os EUA pela possível passagem de Snowden em um avião, decidiu-se proibir o sobrevoo do território. Aqui temos a prova definitiva de que estamos a reboque dos Estados Unidos. Mesmo um governo socialista, de quem esperaríamos uma atitude menos deslumbrada que a de seu predecessor, o conservador Nicolas Sarkozy, repito, mesmo um governo socialista segue a mesma linha. Infelizmente, na França e em muitos países europeus seguimos sendo os servos do que ainda é preciso chamar de imperialismo norte-americano. É uma ilustração desastrosa.



FONTE: Carta Maior

EUA, um Estado policial que ameaça a Humanidade

Nota dos Editores de ODiario.info



As últimas revelações do ex. agente dos serviços secretos dos EUA, Edward Snowden, divulgadas pela revista alemã Der Spiegel e pelo diário britânico The Guardian, confirmaram que a Republica norte-americana, atuando como um estado policial, configura uma perigosa ameaça para a Humanidade.

Documentos enviados por Snowden àqueles media esclarecem que a National Security Agency-NSA instalou nos últimos três anos microfones na sede da ONU e em serviços estratégicos da União Europeia, intervinha dos correio eletrónicos de aliados europeus dos EUA e decifrava documentos sigilosos cifrados de diferentes países.

Segundo o Guardian, as atividades de espionagem envolveram as embaixadas em Washington de 38 países, entre os quais a França, a Espanha, o Japão e a Grécia. Serviços da própria NATO estão a ser espiados.

Incomodados pelas comprometedoras informações de Snowden, governantes da Alemanha e da França pediram «esclarecimentos» a Washington e o presidente da União europeia manifestou «preocupação». O presidente do Parlamento Europeu qualificou o caso de «escândalo gigantesco» e admitiu que, a confirmar-se a autenticidade das revelações de Der Spiegel, elas teriam «um grave impacto nas relações entre a União Europeia e os EUA. A Apple, a Microsoft e a Facebook reconheceram já que têm colaborado estreitamente com a NSA, facilitando-lhe o acesso a dados pessoais de destacadas personalidades, desde contas bancarias a correspondência eletrónica.

Seria uma ingenuidade acreditar que os tímidos protestos da União Europeia e de governos aliados dos EUA podem vir a afetar as suas relações com Washington. São iniciativas de fachada hipócritas porque estão todos envolvidos numa rede de cumplicidades com a estratégia imperial da Casa Branca.

Para a Humanidade é transparente que os EUA se comportam como um monstruoso estado policial que faz da espionagem aos próprios aliados instrumento da sua política de dominação planetária.

Os microfones colocados na ONU, na UE e em embaixadas de dezenas de países são afinal complemento da estratégia de terrorismo de estado de que são exemplo as agressões aos povos do Iraque e do Afeganistão, os bombardeamentos da Somália e do Iémen e a criação de um exército permanente dos EUA em Africa.

Entretanto, o presidente dos EUA, que promulgou a lei que permite a prisão sem culpa formada de quaisquer cidadãos «suspeitos de contactos com terroristas», o laureado com o Nobel da Paz que seleciona pessoalmente em listas da CIA os nomes de «inimigos» a serem assassinados pelos misseis dos aviões sem piloto insiste, farisaicamente, em se apresentar como um paladino da liberdade, da democracia, da concórdia entre os povos. Mas não pode apagar a realidade: os EUA, desmascarados, surgem hoje perante a Humanidade como um estado policial monstruoso.

OS EDITORES DE ODIARIO.INFO


FONTE: ODiario.info

Pacto social e governabilidade conservadora

Ao atuar em favor da desmobilização das forças sociais, o lulismo descartou a possibilidade de transformações feitas com base na pressão da sociedade e aceitou a lógica de governar sem a participação direta desses atores. Com isso, a conquista de maioria parlamentar tornou-se um objetivo a ser alcançado a todo custo.

Por Ivan Valente


Não é necessário grande esforço para notar o avanço das ideias conservadoras nas últimas décadas em todo o mundo. As grandes propostas da modernidade – a igualdade entre os indivíduos, a liberdade e a justiça para todos – e as transformações movidas pelas grandes utopias têm sido questionadas pela descrença generalizada, pela exacerbação do individualismo e por uma nova versão do “fim da história”. Mesmo que os ideólogos do liberalismo tenham sido forçados a admitir, após o estouro da bolha imobiliária de 2008, que algo estava errado no “fantástico mundo do livre mercado”, é inegável que vivemos sob a hegemonia do pensamento liberal.

A débâcle do socialismo burocrático no Leste Europeu e os novos e polêmicos caminhos trilhados pelos partidos comunistas nos países asiáticos não foram suficientes para arrefecer a busca do liberalismo em afirmar-se como única forma válida de interpretar o mundo. Era preciso responder de forma contundente a processos sociais e políticos que seguem questionando o falso consenso liberal-democrático, como o importante movimento bolivariano latino-americano – que fala abertamente da conjunção entre socialismo e democracia –, a chamada “Primavera Árabe” e a resistência popular europeia à política da Troika.

O neoliberalismo, por sua vez, não foi apenas uma saída econômica diante de mais um ciclo de recessão da economia capitalista mundial. Ele veio para radicalizar a liberdade do mercado, redefinir o papel do Estado e reorganizar o conjunto das relações sociais, enfraquecendo direitos históricos da cidadania. Nesse contexto, “esquerda” e “direita” seriam conceitos superados, e a luta entre projetos antagônicos e classes seria substituída por esforços permanentes de conciliação. A polarização política e o “radicalismo” deveriam ser evitados em nome do compromisso com a democracia e a estabilidade da nova ordem mundial.

Tal ideia esvazia o espaço da política como instrumento de ação transformadora e reforça a manutenção do status quo. Com menos espaço para as forças de contestação, busca-se cristalizar o sentimento de que não há alternativas viáveis à ordem liberal. O conformismo, alimentado por poderosos instrumentos de convencimento e alienação, e o individualismo, reforçado por diversos mecanismos que subvertem o convívio e a ação coletiva, se fortalecem. Disseminando de forma competente esses valores, as elites operam arranjos institucionais com vistas a consolidar a máxima “quanto menos ruptura e mais consenso, melhor”.

É verdade que as promessas do liberalismo só fizeram ampliar a desigualdade social e o potencial para novas crises econômicas. O saldo em termos ideológicos, porém, é positivo para seus defensores. Mesmo governos, partidos e movimentos que se colocaram por muito tempo contrários ao falso consenso liberal-democrático têm se deixado cooptar.

Transição pelo alto e conciliação no Brasil

A história brasileira é marcada pela tentativa de controle das elites sobre as pressões transformadoras. Tal processo assegurou que as grandes mudanças na história do país se dessem na forma de transições conservadoras, sem experiências significativas de ruptura com caráter pedagógico para os “de baixo”. Houve momentos importantes de resistência e luta popular, que conheceram a virulência repressiva das classes dominantes. Mas, da independência e a abolição da escravidão ao golpe militar de 1964, tudo teve a marca da conciliação das elites e das transições costuradas pelo alto.

Mesmo a superação da ditadura, sob a decisiva pressão do movimento democrático e de uma classe trabalhadora ascendente politicamente, se deu de forma negociada, com a derrota das Diretas Já! e a alternativa Tancredo/Sarney, que culminaria na Constituinte e nas eleições de 1989, quando as elites impediram a chegada ao poder de um governo dos trabalhadores.

É neste contexto histórico que a eleição de Lula em 2002, após quase quinze anos de hegemonia neoliberal, ainda tem uma forte carga simbólica. O processo conciliador e negociado já estava, entretanto, em marcha.

Uma década a ser compreendida

A última década foi marcada por alguns avanços distributivos e, paradoxalmente, por profundos recuos ideológicos. O começo do governo Lula, apesar dos pesares, gerou uma grande expectativa de mudança. Mas a necessidade de ganhar a confiança do mercado financeiro levou a política econômica a extremos, com a manutenção da trilogia “controle da inflação, manutenção do superávit primário e câmbio flutuante”. Essa lógica implicava manter juros siderais, alavancando violentamente a dívida pública, que consome hoje metade do orçamento nacional.

O abandono de um programa efetivamente democrático e popular, que atacasse as bases de dominação do capital com medidas como a auditoria da dívida, a reforma urbana e agrária, a democratização dos meios de comunicação, o fim das privatizações e a reversão daquelas realizadas por FHC e o investimento público maciço nas áreas sociais, demonstrando uma inversão de prioridades, foi uma escolha consciente.

A opção por não melindrar o capital financeiro e os interesses estrangeiros levou, assim, a ações políticas bem definidas. A primeira visava ganhar o apoio dos excluídos e muitos pobres, a quem interessa uma inflação baixa, que não lhes roube o salário. A segunda tinha como objetivo neutralizar o setor mais consciente e organizado do sindicalismo, controlando suas lideranças e rebaixando sua agenda política. Ambas criaram as condições para um fortalecimento do conservadorismo.

Essa estratégia inicial levou a uma frustração dos setores médios progressistas que constituíam parte importante da base do petismo. Tal processo se expressou particularmente no funcionalismo público, duramente atacado pela reforma da Previdência em 2003. E alcançou seu ponto máximo com o escândalo do “mensalão”, causando grande desgaste na classe média como um todo.

Por meio de uma política econômica conservadora apoiada em medidas de largo alcance popular, muito eficientes para ganhar a confiança dos setores menos favorecidos, a aposta do lulismo foi combinar alguma distribuição de renda, crédito barato e consumo. Ampliando a base da pirâmide social, brasileiros foram incorporados ao mundo do trabalho e do consumo, criando a falsa sensação de ascensão social e favorecendo o discurso oficial de surgimento de uma “nova classe média”. Esse discurso tem sido instrumentalizado dentro e fora do governo para favorecer a ideia de que o florescimento de uma nova classe média traz demandas que só o mercado pode atender (planos de saúde, escolas privadas, carros do ano). Aqui, a luta em defesa de uma escola pública, gratuita e de qualidade para todos e de um sistema único de saúde público, com mais investimentos estatais, perde terreno. Os trabalhadores “incorporados” ao consumo tornaram-se a base de sustentação do lulismo e nesse movimento geram valores notadamente individualistas e conservadores, próprios dos setores sociais mais vulneráveis à ideologia dominante.

Rebaixamento programático e avanço conservador

Ao não atacar o modelo econômico das elites, consolidar a hegemonia do pensamento liberal e afirmar o sistema agroexportador como base de divisas para o país, o lulismo legitimou o agronegócio, recuando em qualquer proposta de reforma agrária e cedendo à pressão dos ruralistas na mudança do Código Florestal Brasileiro, um brutal retrocesso na preservação do meio ambiente. Atuando como bancada suprapartidária e conhecendo seu peso na governabilidade conservadora, os ruralistas criaram asas e agora comandam uma nova ofensiva: atacam a legislação trabalhista no campo, o combate ao trabalho escravo e os direitos das comunidades indígenas e quilombolas. Os retrocessos podem ir mais longe, com a pressa por aprovar um novo Código de Mineração. Nesse contexto, não foi à toa que figuras como os senadores Blairo Maggi e Kátia Abreu, notórios ruralistas, migraram para a base do governo – sendo o primeiro guindado à presidência da Comissão de Meio Ambiente do Senado.

A mesma coisa se pode dizer do recuo governamental na regulação do setor midiático e na democratização dos meios de comunicação. Intimidado pelo discurso falacioso de “volta da censura” propagado pela grande imprensa, o governo continua financiando generosamente o setor com publicidade, desonerando grandes corporações com apoio do BNDES e entregando o patrimônio público às operadoras de telecomunicações. Ao alimentar valores do pensamento único conservador e influenciar a pauta política, o monopólio das comunicações, que concentra em poucas empresas e famílias as principais empresas do setor, é um dos maiores entraves a uma verdadeira democratização da sociedade brasileira.

Embora alguns ganhos nos direitos sociais, trabalhistas e civis tenham sido conquistados no período – notadamente por pressão dos movimentos sociais –, não está no horizonte a possibilidade de mudanças estruturais de interesse dos trabalhadores, como uma reforma tributária que taxe as grandes fortunas e priorize os impostos sobre a riqueza e a propriedade em vez do consumo e da renda assalariada. Hoje, a manutenção da política tributária representa uma brutal injustiça fiscal e social, reforçando a matriz patrimonialista e a concentração de riqueza.

O mesmo se nota na dificuldade em fazer avançar a reforma política, mais uma vez enterrada no Congresso. A quem interessa acabar com o poder econômico nas eleições e fortalecer a participação popular no processo político? Aprovar o financiamento público exclusivo de campanha com punição para a doação e recepção de recursos privados já seria uma grande revolução. Estabelecer mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos, e facilitar os projetos de iniciativa popular seria outro grande avanço. Mas o que fazer quando tudo se choca com a governabilidade?

Governabilidade e bloqueio dos avanços

Nos últimos anos, esse conceito tem sido largamente usado para caracterizar a tática de viabilizar ações de governo por meio da conquista da maioria parlamentar via a incorporação de diferentes partidos à base de apoio do Executivo. Ao atuar em favor da desmobilização das forças sociais mais combativas, o lulismo descartou a possibilidade de transformações feitas com base na pressão da sociedade organizada e aceitou a lógica de governar sem a participação direta desses atores. Com isso, a conquista de maioria parlamentar tornou-se um objetivo a ser alcançado a todo custo.

Esse chamado “presidencialismo de coalizão” – condição, aliás, corrente antes da chegada do PT ao governo – é formado por uma base heterogênea de partidos políticos sem projeto, programa ou ideologia. Todos, porém, ávidos por participar da divisão de espaços no aparelho do Estado, liberar emendas parlamentares ao Orçamento Público e tirar vantagem de cada proposta que tramita no Congresso, como forma de apropriação privada direta ou em defesa de interesses de grandes e médios grupos econômicos.

Trata-se de uma prática que tem relação direta com a participação dos interesses privados nas decisões do Parlamento. A principal via de corrupção hoje, todos sabem, é o financiamento das campanhas eleitorais. Nesse processo, constituem-se bancadas “suprapartidárias”, que barram o avanço de qualquer medida progressista. Essas bancadas vão desde a junção de interesses econômicos (como a bancada ruralista) até a união de posições políticas ou religiosas (como a bancada do fundamentalismo cristão). O consequente enfraquecimento dos partidos e o fortalecimento de interesses fragmentários, aliados à necessidade de assegurar o controle por parte do governo dos principais postos no Parlamento, levam a excrescências como a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Paralelamente, a governabilidade, cada vez mais dependente de partidos conservadores, rebaixa o horizonte do governo, mesmo em temas básicos da cidadania. Essa situação cria uma vergonhosa situação: enquanto medidas como a união civil de pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto e a descriminalização das drogas avançam em países vizinhos como o Uruguai, o Brasil vive uma brutal ofensiva conservadora contra tais iniciativas – incluindo a resistência, dentro e fora do governo, à punição pelos crimes praticados pela ditadura militar.

Existe uma saída

Romper esse círculo vicioso e apresentar uma verdadeira resposta alternativa, admitindo o conflito de interesses e a necessidade da luta e da mobilização para afirmar o protagonismo das maiorias excluídas, é o grande desafio da esquerda. Mas, para isso, é preciso evitar táticas que possam enredar os setores populares em compromissos que neutralizem sua força transformadora. É verdade que vivemos um momento de baixa das lutas sociais, causado por uma diversidade de fatores e influenciado pelas opções políticas do bloco que outrora representava a resistência ao neoliberalismo.

Porém, temos experiências que demonstram que, mesmo nas regras do jogo democrático-burguês, é possível colocar em prática políticas contra-hegemônicas que fortaleçam os “de baixo”. É o que vemos no Equador, na Bolívia e na Venezuela, onde políticas efetivadas nos últimos anos − elevando salários, assegurando o acesso à saúde e educação, proporcionando alimentos a preços subsidiados, reduzindo drasticamente a pobreza, erradicando o analfabetismo e enfrentando as elites − mostraram que é possível contrariar interesses em favor de uma radical transformação social. Evidentemente, a realidade social, política e econômica do Brasil é diferente. Mas o é também porque as condições para a constituição de um projeto alternativo foram enfraquecidas em suas bases: a independência das organizações dos trabalhadores e a manutenção de um projeto de enfrentamento às elites nacionais e internacionais.

É possível reconstruir um projeto popular para o Brasil que enfrente o avanço conservador com base numa plataforma de mudanças estruturais. Mas isso só poderá ser feito amparando-se nas massas trabalhadoras e excluídas e rompendo, definitivamente, o ciclo de transições conciliadas que até aqui mantiveram as mesmas elites no comando da nação. Essa é uma tarefa urgente, que exige tenacidade daqueles que acreditam na democracia e no socialismo como forma de superar as mazelas de nosso povo.

Ivan Valente é deputado federal (Psol-SP)


FONTE: ControVérsia 

domingo, 14 de julho de 2013

Castells propõe outra democracia

Por Manuel Castells 


Num diálogo com acampados em Barcelona, sociólogo sugere: política é muito mais que representação; internet livre é chave da mudança

Transcrição e tradução: Daniela Frabasile

Estranha Europa. No terreno dos direitos sociais e da política institucional, um passo atrás sucede o outro, numa espiral descendente que parece não ter fim. Na última semana, a Itália promoveu nova rodada de privatizações e ataques ao estado de bem-estar social (entre outros pontos, acabou a gratuidade das consultas médicas com especialistas, na rede pública de saúde). Medidas semelhantes têm sido adotadas há pelo menos um ano e meio, desde que o continente decidiu cobrar das sociedades o desfalque provocado nas finanças públicas pelo socorro aos bancos… As eleições, que deveriam corrigir tais retrocessos, parecem impotentes. Os partidos com chances reais de chegar ao poder igualaram-se, ao aderirem a um “pensamento único” que nunca ousa tocar os lucros do sistema financeiro. A esquerda mais radical parece, como tantas vezes, incapaz de dialogar com as maiorias.

E no entanto, engana-se quem julga que tudo são misérias. Nos últimos meses, a Europa converteu-se num laboratório de novas formas de mobilização da sociedade civil – marcadas pela autoconvocação e busca de autonomia. O processo começou em setembro de 2010, quando os estudantes britânicos e italianos mobilizaram-se maciçamente (e de modo muito criativo) contra a cobrança de mensalidades (no Reino Unido) e uma contra-reforma universitária (na Itália). Ampliou-se a partir de maio, quando a juventude espanhola transformou em acampamentos as praças principais de dezenas de cidades, para protestar contra o sequestro do futuro coletivo por “políticos e banqueiros”. Daí derivou a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas.

De que modo estas novas formas de expressão e de luta poderão transformar a sociedade? Em todas as mobilizações recentes, busca-se uma nova democracia (e se procura praticá-la em micro-escala, na gestão de assuntos como alimentação, limpeza e segurança dos acampamentos). Constata-se que, na Europa, as instituições que deveriam representar a sociedade – Parlamentos e governos – perderam ou abandonaram este papel.

No entanto, é nestas instituições que ainda se concentra o poder – inclusive o de estabelecer ou extinguir direitos. É preciso, portanto, incidir sobre elas, pressioná-las – ainda que se procurem caminhos para superá-las, Como articular esta dialética, que exige reivindicar de quem se considera ilegítimo?

As praças espanholas foram, além de tudo, palco de importantes reflexões teóricas a este repeito. Os debates eram feitos ao ar livre, sem nenhuma solenidade – mas com muita densidade e empenho criador. Na Praça Catalunha, em Barcelona, o sociólogo e filósofo Manuel Castells compareceu a um dos diálogos. Falou cerca de 50 minutos, sobre Comunicação, Poder e Democracia. Lembrou sua condição de participante ativo dos movimentos de maio de 1968 – talvez o primeiro momento em que se reivindicou coletivamente a superação democrática das instituições surgidas da revolução francesa. Foi, como é de seu costume, claro e incisivo. Em alguns momentos, não se furtou a recomendar ações e posturas: por exemplo, a luta pela universalização do acesso à internet e a atitude de não-violência ativa.

Os vídeos com a fala de Castells estão disponíveis na internet (veja ao final do texto). Para que possa circular mais amplamente e despertar reflexão mais profunda, Outras Palavras transformou-o em texto escrito e traduziu-o para o português. Ótima leitura! (A.M.)

* * * 

Meu nome é Manuel Castells. Sou professor e investigador da Universidade da Catalunha. Estou aqui para falar com vocês sobre Comunicação, Poder e Democracia. Uma das acampadas perguntou-me se gostaria de comparecer ao acampamento para falar de algumas das ideias que tenho desenvolvido há muitos anos, precisamente sobre este tema, e que estão reunidas num livro que lancei há pouco, Comunicação e Poder. Fiquei encantado, porque acho central debater publicamente estes temas. Quis contribuir à maneira que posso para um movimento que ocorre em Barcelona, na Catalunha, na Espanha e em outros países. Ontem, já havia 706 acampamentos em todo o mundo e continuam a se multiplicar. São como a água. Quando ela corre, passa por qualquer lugar, supera obstáculos.

Quando há uma necessidade real, sentida em muitas sociedades, baste que a luta por ela comece a se expressar em alguma parte para que se difunda um sentimento de que “nós também podemos”. Foi o que ocorreu, por exemplo, com as revoluções árabes. É interessante que um dos sites mais atualizados sobre o movimento [espanhol] chama-se “Yes, we camp”, reproduzindo o que Obama disse em sua campanha – embora saibamos que agora as coisas estão mais complicadas. O importante é que muitas pessoas, em todo o mundo, não aceitam a fatalidade da crise e pensam que podem fazer algo – o quê, ainda não sabem – para enfrentar a miséria política predominante e recuperar o papel de protagonistas que as pessoas sempre desejaram ter em seu futuro.

Não estou aqui para fazer um discurso político, mas para compartilhar o que pude fazer, em termos de investigação, reflexão e análise a este respeito, durante muitos anos. Começarei debatendo qual a relação entre comunicação e poder. Debaterei em seguida a crise que a democracia está vivendo e as soluções concretas que se propõem para a reconstrução desta democracia.

* * *

As relações de poder são essenciais em todas as sociedades e através da História. São, aliás, as relações essenciais em nossas sociedades, porque quem tem poder constrói as instituições em função de seus interesses e valores. As instituições que vivemos são, cada vez mais, simples expressões destas relações de poder.

Mas como se forma o poder? Ele está fundamentalmente em nossas mentes: não fora, mas dentro de nós. Claro que há, também, a violência e a intimidação, para o caso de nos atrevermos a pensar diferente – mas a História demonstra que um poder que se apoia apenas na violência é sempre débil. Para superá-lo, é preciso passar por muito sofrimento. Mas, em última instância, a dominação das mentes é muito mais eficaz que a tortura.

Por isso, a batalha do poder está em nossas mentes, na forma que pensamos. Ela determina o que fazemos. E as mentes são redes: redes neuronais, que formam suas visões de mundo, suas concepções, em relação com outras pessoas, outras mentes, outras redes de neurônios e com as redes de nosso entorno social e natural.

Tudo isso é o processo de comunicação. Ela é simplesmente a conexão entre distintas redes neuronais. O entorno comunicativo e o que se passa nele é, portanto, o elemento fundamental através do qual nossas mentes funcionam e, portanto, formam-se as relações de poder.

Onde quer que haja poder, haverá resistência a ele.
E o controle da comunicação foi sempre
a forma fundamental de exercício do poder

Felizmente há sempre, nas sociedades, não apenas poder mas, também, contrapoder. Se existe uma lei social geral certamente válida, é que sustenta: onde quer que haja dominação, haverá resistência a ela. Em consequência, ao longo do tempo e também aqui, hoje, o que aparece como “normal”, “natural”, “estabelecido”, “acordado” são simplesmente os resultados dos compromissos de luta e negociação que se dão entre distintos interesses e valores na sociedade. Quem ganha, vai ampliando seu poder nas instituições. Quem contesta o poder e apresenta ideias novas, se tem poder suficiente, vai mudando estas instituições. Esta é a História, continuamente. O vai-e-vem entre o velho e o novo; entre os interesses que já estão cristalizados, burocratizados nas instituições e as interesses e valores de quem quer propor uma nova maneira de ser e viver.

É por isso que o controle da informação e da comunicação foi sempre a forma fundamental de exercício do poder. O controle dos governos, das grandes empresas midiáticas – esta é a forma essencial. E por isso a política transformou-se, hoje, em algo midiático. O que não existe nos meios, não chega aos cidadãos – e, portanto, não existe. Aliás, o mais importante da política mediática não é tanto o que dizem os meios, mas o que eles ocultam: a ausência de mensagens, opiniões e alternativas.

Na medida em que há uma mudança organizativa e tecnológica no entorno da comunicação, mudam também os processos de comunicação, e como consequência as relações de poder. Qual a mudança fundamental que temos observado nos últimos anos? É a passagem de um sistema totalmente dominado pela comunicação de massas, e centrado nos meios de comunicação de massas, para um sistema que chamo de auto-comunicação de massas, através da internet.

Por auto-comunicação de massas podemos entender a capacidade de cada pessoa para emitir suas mensagens, selecionar as que quer receber e organizar suas próprias redes – nas quais os conteúdos, as formas e os participantes são definidos de forma autônoma. É claro que isso acontece em um cenário dominado por grandes empresas de comunicação e pelas empresas de internet. Porém, dentro desse espaço existem possibilidades infinitamente maiores que havia no espaço tradicional dos meios de comunicação de massa. Pode-se organizar redes horizontais de comunicação interativa, que chagam à sociedade através de pessoas, interesses, valores e grupos sociais não representados pelos sistemas corporativos de poder. Em consequência, ampliou-se extraordinariamente o espaço para a comunicação conflitiva, e portanto o espaço de auto-representação das pessoas na sociedade.

Durante anos, minhas observações dos movimentos sociais mostram que essa autonomia comunicativa tem sido aproveitada, para organizar e ampliar a mobilização. Desde março de 2004, na Espanha, existe um movimento espontâneo, através de mobilizações, provocadas pelas mentiras do governo naquele momento. Tudo o que se passou nos últimos anos e as revoluções árabes, toda essa experiência mostra que o processo muda a partir do momento em que é produzida alguma indignação por algum ato que já não se pode suportar. A partir dessa indignação organiza-se um debate. Desse momento em diante, as iniciativas de rede, do ciberespaço, passam ao espaço urbano, e se organiza uma interação entre o espaço urbano e o da rede virtual. Ela organiza, mobiliza, gera uma dinâmica que modifica instantaneamente as relações de poder na sociedade, e começa a influenciar o mais importante: as mentalidades das pessoas.

As pessoas percebem que não estão sozinhas e se tornam mais fortes. O sistema passivo de comunicação e democracia consiste em isolar as pessoas e agregá-las em função dos que controlam o poder

De repente, as pessoas percebem que não estão sozinhas. O que sentem, o que pensam, outros também sentem e pensam. E quando não estão sozinhas, as pessoas são mais fortes. Porque todo o conjunto do sistema passivo de comunicação e de democracia consiste em isolar essas pessoas e agregá-las em função dos que controlam os sistemas de poder nas instituições. A separação e agregação segundo o que já está estabelecido fazem com que só se possa pensar através dos sistemas predeterminados pelos interesses que dominam as instituições. A partir do momento em que surge uma dinâmica espontânea de organização em rede, na internet, nas ruas e nas relações interpessoais – a partir daí, a dinâmica muda. Quando as pessoas já não estão sozinhas, quando sabem que estão juntas, produz-se a mudança mais importante nas mentes,. Perde-se o medo de dizer e de fazer. Porque o medo é a emoção primordial do ser humano, porque todos somos descendentes de covardes, pois se os valentes não corressem o suficiente, eram pegos pelas feras.

Portanto, toda a sociedade está baseada na capacidade de instigar o medo nas pessoas, e na capacidade das pessoas em superar esse medo. Essa superação só pode ser feita em grupos, nunca individualmente. É da superação do medo, através da reunião de indivíduos em grupos – mas sem deixar a sua individualidade – que começam a surgir críticas, alternativas e debates sobre que outras formas de vida são possíveis.

* * *

Isso permite colocar saídas para a crise da democracia atual. Em todo o mundo, estamos vivendo uma crise muito séria e profunda da democracia. A democracia representativa foi uma conquista histórica dos povos, que custou muito sangue, suor e lágrimas, contra os despotismos que dominaram grande parte do mundo. Porém, a partir do momento em que já se constituem instituições democráticas, imediatamente formam-se partidos políticos, que definem as regras da participação política de acordo com seus interesses e os interesses que representam. Fecham-se outras vias de representação e se assegura por lei eleitoral que apenas os partidos majoritários podem governar.

A democracia representativa é reduzida, a distância em relação aos cidadãos aumenta, e a classe política organiza-se como classe própria, como trabalho profissional. Já não importa qual ideologia o político segue, ou se é corrupto ou não. Eles podem dizer: “a política sou eu, a política é o partido e o partido sou eu”. Qualquer tipo de intervenção política tem que passar por essa instância estrutural dos partidos. Em consequência, quando há corrupção, há impunidade. Quando há erros graves na condução de políticas sobre a crise econômica, não se responsabiliza ninguém por tais erros e pelas consequências que produziram sobre os cidadãos. Só quando chegam as eleições os políticos pagam por seus erros. Mas o eleitor deve escolher entre dois menus da mesma cozinha. Porque as leis eleitorais foram construídas para que os partidos majoritários continuem sendo majoritários. A menos que ocorram “terremotos eleitorais”, o que não é impossível, mas só acontece como consequência de mudanças sociais profundas.

Dois terços dos cidadãos do mundo acreditam que não são
governados democraticamente. Dizem que vivem numa democracia, 
porém ela não é democrática. E isso é considerado normal

Dois terços dos cidadãos do mundo acreditam que não são governados democraticamente. As pessoas dizem que vivem em uma democracia, porém ela não é democrática. E isso é considerado normal. A classe política é o grupo mais desprestigiado em todas as pesquisas internacionais sobre prestígio profissional. Inclusive, na Itália, os mafiosos e as prostitutas se saíram melhor que os políticos. As pessoas diziam que pelo menos eles dizem o que fazem, diferentemente dos políticos. Insisto que isso é prejudicial para a maioria dos políticos, que são honestos e tentam fazer seu trabalho. Mas quando há um sentimento tão generalizado no mundo, os políticos fizeram algo que os colocou como classe homogênea, porque não é excepcional: foi empiricamente constatado pelos estudos de sociologia política.

Quando as coisas vão “mais ou menos”, tudo continua igual. Estudos mostram que 75% das pessoas votam contra alguma coisa, e não a favor. As mensagens na propaganda política são, na maioria das vezes, negativas, pois os profissionais de marketing político sabem que uma mensagem negativa tem cinco vezes mais impacto que uma mensagem positiva. Portanto, todos atacam todos, e assim todos os políticos afundam na opinião das pessoas.

Porém, quando as coisas vão mal, quando há uma crise, há um despertar de interesse por saber como as coisas poderiam ser diferentes. Quando os cidadãos percebem que não estão satisfeitos com as alternativas que existem, cria-se uma insatisfação. Então, rompe-se a confiança básica entre os cidadãos e aqueles que os deveriam representar. Esse desencontro entre o que as pessoas pensam e seus representantes significa que os representantes da democracia caminham para um lado, enquanto o sentimento dos representados vai por outro.

Devemos lembrar que, de acordo com o modo como se organiza a insatisfação popular, podem ocorrer movimentos extremistas, fascistas, racistas, xenófobos, que já se vê na Catalunha. Foi o que ocorreu na crise dos anos 30 – da qual não surgiu a revolução socialista, mas o fascismo. Por esse motivo, é importante que outros movimentos coletivos, com valores positivos, humanos, humanistas ocupem o espaço para preencher essa lacuna entre a política e a sociedade.

Portanto é necessário que a ideia de uma reconstrução da democracia esteja nas ruas, aqui e no mundo. Aqueles que representam a democracia hoje não podem fazer essa reconstrução, pois ela vai contra seus interesses como grupo profissional e grupo político. Muitos tentaram implantar mudanças, porém seus próprios partidos cortaram esses projetos. É o sistema que bloqueia essa reconstrução, e não os indivíduos. Esses sistemas têm interesses poderosos, relacionados ao poder político, econômico, cultural, tecnológico. Se não houver uma pressão social, não haverá mudança. E a mudança social inicia com as mentes: o que muitas pessoas estão fazendo, aqui e em outros lugares, é mudar a forma de pensar de si mesmas e das demais, pensar diferente e pensar juntos.

* * *

Três temas me parecem básicos para a reconstrução da democracia. Poderiam ser debatidos aqui. Um é a democracia através da comunicação. Outro é que tipo de instituições democráticas e de reforma democrática necessitamos. Por último, se existem outras formas de democracia.

A comunicação é fundamental, pois é a base da relação entre poder e contrapoder. A democratização da comunicação é o princípio da democratização das instituições da sociedade. A comunicação para toda a sociedade é um direito fundamental: a comunicação livre, autônoma e para todo o mundo é um direito tão fundamental quanto a saúde e a educação. Esse direito concretiza-se hoje pela internet e pelas redes móveis como direito humano fundamental.

O acesso à internet precisa ser universal. Também o acesso à telefonia foi subsidiado. É essencial multiplicar pontos de acesso. As pessoas precisam poder acessar quando necessitarem.

O acesso à rede precisa ser universal e subsidiado. A forma de financiar este direito depende das negociações entre os reguladores públicos e as empresas de telecomunicação. Na história das telecomunicações, o acesso à telefonia foi subsidiado em diversos países e o mesmo pode ser feito com a internet. Também é essencial a multiplicação de pontos de acesso público e gratuito, nos centros sociais, nas escolas, nas bibliotecas, para que a internet seja sempre algo possível para todos. As pessoas precisam poder acessar quanto necessitarem. Porém, isso não significa que só devemos nos comunicar pela internet. Por exemplo, a ideia de votar pela internet é um gravíssimo atentado à democracia, e a ideia de que as consultas médicas só deveriam ser feitas pela internet também é prejudicial. É preciso ter opções. O direito fundamental é ao acesso. Ele permite que todos se comuniquem com todos; permite a construção de uma rede em função de nossos projetos, nossos interesses e nossos sonhos.

Além disso, é preciso lutar pela liberdade de internet, pois o acesso à internet não é o mesmo que uma internet livre. Acabar com a censura, acabar com a invasão de privacidade, que é uma prática constante, e a livre circulação de conteúdos digitais. Implica ir a quem está por trás das leis: empresas de conteúdos culturais e os grupos de pressão que atuam para que não haja liberdade na internet (…).

Também é preciso que se crie instituições e processos democráticos de forma concreta. Existem medidas muito concretas para uma reforma política e institucional.. A reforma na lei eleitoral para que não se discrimine as minorias políticas, e a possibilidade de contabilizar votos nulos e brancos. Como fazê-lo? Para isso, é preciso imaginação. Mas acredito que a ideia de representar os votos nulos e brancos no parlamento é muito interessante. Entre outras coisas, porque nas eleições de Barcelona, por exemplo, eles somam quase 7%.

A possibilidade de eleger pessoas não filiadas a partidos é básica. Um dos maiores escândalos da democracia é que se vote apenas em um partido. (…) Infelizmente, ninguém diz nada sobre isso, tudo continua igual, porque os que podem mudar são aqueles que se beneficiam desse sistema.

Quanto ao governo, insisto na transparência informativa absoluta pela internet. Tudo o que os cidadãos têm o direito a saber, tem que estar na internet, acessível. Mas não em letras pequenas em cinza, e sim como um sistema dinâmico, usando técnicas como as da publicidade, que torna as informações compreensíveis. Dessa forma se abriria a possibilidade de começar a construir alguma confiança nas instituições democráticas.

A internet deveria se utilizada em processos participativos e de consulta. 
A participação precisa ser mais que presenciar uma
reunião burocrática, ao final de um dia de trabalho

As enormes possibilidades da internet também deveriam ser utilizadas para processos participativos e de consulta, em uma grande quantidade de problemas concretos, particularmente em nível municipal. A democracia participativa pode ser muito ampliada, se puder ir além da presença em uma comissão municipal burocrática, depois de um cansativo dia de trabalho. Se os processos de participação fossem estendidos a internet, inclusive com voto indicativo, a democracia poderia ser mais abrangente. Os representantes políticos teriam que ser submetidos a organismos que os supervisionem, mas isso daria muito trabalho. Insisto nesse ponto que as propostas do acampamento são muito precisas e vale a pena pensar nelas, refletir sobre elas e debatê-las.

Mas há algo mais importante. É a criação de novas formas de democracia, a partir dos processos de debates em curso. O mais importante, na minha opinião, não é o que se propõe, mas como se propõe. Não é tanto o que se faz, mas como se faz. Pois é aí que está a questão. Uma democracia futura não sairá de documentos, por mais completos e bem formulados que sejam. Sairá de práticas coletivas, que vão experimentando novos mecanismos de deliberação, representação e decisão. Vamos aprendendo no caminho. Esse é o método, diria eu, político e científico. Através de experiências, pois é muito difícil que alguém invente um sistema novo, que substituiria o outro sem que haja debates e sem que as pessoas saibam exatamente o que está acontecendo. Daí a importância do que está sendo feito aqui e em outras ocupações de praças:, a participação em comissões, a coordenação de comissões e o poder de decisão das assembleias; que cada coletivo específico gere suas próprias formas que podem ser controladas pelas pessoas que participam. É o que está sendo feito aqui, mas não apenas aqui, não apenas nos acampamentos, mas na sociedade.

O resultado disso seria a substituição da democracia dos partidos para a democracia das pessoas. É essencial o que já está sendo feito, que não haja líderes no processo, que se troquem as posições de influência, que se mantenha a abertura total, e tolerância total ao debate. O direito à estupidez é um direito humano fundamental, e deve ser respeitado. Que não haja mecanismos formais de militância, como não há aqui, que se confie, sobretudo, na capacidade coletiva, por interação, por uma estrutura em rede, de autocorreção dos defeitos, no conjunto da sociedade. Isso não é uma utopia, isso está sendo feito aqui, e se é feito aqui, pode ser feito na sociedade.

Não defendo isso como modelo único, mas em uma fase de experimentação. Essa forma de participação permite ver a emergência de modelos distintos, na prática. É um processo lento, porque queremos ir longe. Vamos fazer o que gostamos, vamos criar uma democracia, tranquilamente, e não depressa, como o é a vida hoje em dia.

Minha grande experiência com movimentos sociais – começando com maio de 68, do qual participei ativamente – me diz que aqui, e que em todos os acampamentos ao redor do mundo, existem raízes. Porque quaisquer que sejam as formas, elas se expandirão. Impulsionarão mudanças profundas, precisamente por ser este um movimento de pessoas, não de organizações. E as pessoas não são criadas ou destruídas, mas as pessoas se transformam.

É essencial que esse processo de reconstrução da democracia 
sustente um princípio fundamental. Um imperativo categórico,
que na minha opinião, já se expressa: a não-violência

Mas não será fácil. E quando os poderes se derem conta de que as praças falam sério – pois ainda não se dão conta disso – reagirão, provavelmente de forma violenta. Existem muitos interesses em jogo. Por isso é essencial que esse processo lento e profundo de reconstrução da democracia viva com um princípio fundamental. Um imperativo categórico, que na minha opinião, já se expressa aqui, que é a não violência.

Depois de 11 dias de acampamentos por toda a Espanha, não houve nenhum incidente violento. Por isso, a violência provável do poder deve ter como resposta a não-violência das pessoas. E para isso é preciso muita coragem, porque responder a violência com violência é uma reação de medo. Será preciso trabalhar muito com as pessoas que têm tanto medo, que não o superam, e que se tornam violentas. É preciso ir a um nível superior, o da superação do medo a partir da aceitação medo. A única forma de superar o medo é sair da solidão, juntar-se com os demais, e se superarem o medo sem violência, tudo é possível.

Se precisasse criar um slogan, ele seria: medrosos do mundo inteiro, uni-vos pela rede, pois só podem perder seu medo.


FONTE: Outras Palavras