sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O socialismo deve retomar a ofensiva

Por Miguel Urbano Rodrigues


Ao reler o capitulo XVIII de "Para alem do capital", de István Mészáros, senti a necessidade de escrever umas páginas para condensar a reflexão suscitada pelo trabalho do filósofo marxista húngaro. [1] 

O andamento da história conferiu uma grande actualidade ao ensaio do autor de "O Poder da Ideologia", redigido há mais de uma década. 

Mészaros recorda-nos que a chamada "crise do marxismo" levou muitos intelectuais progressistas a adoptarem uma posição defensiva precisamente numa época crucial em que deveriam empenhar-se numa ofensiva socialista. 

Lenine acreditava que a revolução de Outubro, na Rússia, fosse a espoleta de "turbulentas revoltas políticas e económicas" na Europa e fora dela. 

O desfecho da guerra mundial não confirmou essa esperança. O capitalismo sobreviveu. Após o fracasso da revolução na Alemanha e a derrota do Exército Vermelho às portas de Varsóvia, o dirigente bolchevique concluiu que era imprescindível defender a revolução russa do cerco imperial, custasse o que custasse. 

Mas a impossibilidade em prazo previsível da revolução mundial exigiu uma dramática revisão estratégica. 

O projecto socialista, que fora concebido para a ofensiva, viu-se forçado a uma defensiva. 

Mészáros analisa a contradição entre o pensamento de Lenine e o de Estaline sobre essa polémica questão. O primeiro, na ausência da revolução mundial, encarava a luta a travar como "uma operação para sustentar uma posição", operação que, após desenvolvimentos futuros favoráveis no plano mundial, permitiria retomar a ofensiva; Estaline "convertia a desgraça em virtude" convicto de que a vitoria socialista de Outubro abria por si só as portas a uma futura etapa superior do comunismo. 

O refluxo, após Versailles, do movimento revolucionário mundial tornou inevitável a permanência de uma estratégia defensiva. 

As esperanças dos que esperavam grandes convulsões sociais no rescaldo da crise de 1929-33 foram dissipadas pelo rumo da história. O mundo do capital sobreviveu sem dificuldade ao temporal iniciado com o crash da Bolsa de Nova York. A crise não era estrutural. A própria opção pelo fascismo na Alemanha de Weimar inseriu-se numa crise cíclica do capitalismo. 

No contexto defensivo, os órgãos de combate socialistas que actuavam, no âmbito de instituições de fachada democrática, podiam ganhar lutas secundárias, através de reformas impostas pela luta de massas, mas não vencer a guerra contra o capital. A correlação de forças não o permitia. 

Mészáros recorda que os dois pilares da classe trabalhadora no ocidente — os partidos e os sindicatos — se encontravam na prática inseparavelmente ligados a um terceiro membro da montagem institucional geral, o Parlamento, "mediante o qual se fecha o circulo sociedade civil - estado político e se converte nesse 'círculo mágico' paralisante ao qual não se pode escapar". 

Os acontecimentos que precederam a segunda guerra mundial confirmaram que é uma ilusão romântica encarar os sindicatos, isoladamente, como algo pertencente exclusivamente à sociedade civil, susceptível de ser utilizado contra o estado para uma transformação socialista profunda. Seria necessário muito mais do que o derrubamento, no estado burguês, do Parlamento para se produzir uma ruptura rumo ao socialismo. 

No seu ensaio Mészáros dedica uma atenção especial ao Parlamento. 

Até hoje — escreve — "não existe nenhuma teoria socialista satisfatória que diga o que se fazer com ele após a conquista do poder". 

Na concepção que Marx tinha da "política" como negação radical, o Parlamento aparecia como um instrumento perverso do sistema cuja função era "enganar os outros e, ao enganá-los, enganar-se a si mesmo". 

Marx admitia que em alguns países, nomeadamente na Grã-Bretanha, na Holanda, e até nos EUA, a transição do capitalismo poderia realizar-se por meios pacíficos, mas considerava extremamente difícil reorientar radicalmente a "sabedoria parlamentar" de modo a colocar o legislativo a serviço de objectivos antagónicos aos anteriores. 

Reflectindo sobre a experiência das sociedades do leste europeu onde durante mais de quatro décadas estiveram no poder governos que proclamavam a sua opção pelo marxismo leninismo, Mészáros conclui que "não basta demolir um dos três pilares do marco institucional herdado, porque de um modo ou outro o acompanham sempre os restantes. 

A actual crise estrutural do capital, insiste, é uma crise global, que levará à morte do sistema ou à destruição da civilização. 

A compreensão dessa evidência é ainda muito limitada. O controle hegemónico do sistema mediático permitiu após a desagregação da URSS persuadir centenas de milhões de pessoas, através da mistificação ideológica, que a luta de classes findara, o proletariado desaparecera e o capitalismo iria perdurar indefinidamente. 

Entretanto, a ofensiva contra o que resta do Estado do "Bem Estar Social", ao iluminar o aprofundamento da crise do capitalismo demonstrou que a actual, diferente de anteriores, colocava a humanidade perante uma crise estrutural de todas as instituições políticas. Não foi repentina. O seu processo de fermentação vem do começo dos anos 70. 

Para Mészáros o desfecho da confrontação com o capital do conjunto heterogéneo de forças socialistas dependerá de transformações que elas conseguirem introduzir na vida quotidiana, dominada actualmente por ubíquas manifestações das contradições subjacentes. Por outras palavras da habilidade para combinar num todo coerente, com implicações socialistas definitivamente irreversíveis uma enorme variedade de exigências e estratégias parciais que em si mesmas não necessitam ser especificamente socialistas. 

Nesse sentido — esclarece "as exigências mais urgentes do nosso tempo, que correspondem directamente a necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais decentes, juntamente com as exigências inerentes à luta pela libertação da mulher e contra a discriminação racial são tais que, sem excepção, em principio, qualquer liberal genuíno pode fazê-las suas com empenhamento". 

Mas, perante as tendências e contradições do capital, as exigências de mudança radical somente podem ser formuladas na perspectiva de uma alternativa socialista global. Por isso mesmo a renovação criadora do marxismo, tal como a concebia Marx , se tornou imprescindível. 

O MITO DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA 

Volto ao tema do Parlamento e do seu papel instrumental no sistema. A desmontagem dos mecanismos perversos da democracia representativa é uma exigência da luta, porque a mitologia da falsa democracia está tão ancorada na consciência social que exerce forte influência na linguagem, na mundividência e nas formas de luta de muitos comunistas. 

As mudanças que temos testemunhado — sublinha Mészáros — "no funcionamento do próprio parlamento — mudanças que tendem a privá-lo até das suas limitadas funções autónomas do passado — não podem ser de maneira circular em termos da instável máquina eleitoral e das correspondentes praticas parlamentares. Os porta-vozes da hipostasiada "soberania absoluta do parlamento e os seus embates teóricos com os seus colegas parlamentares em torno da miragem da "perda da soberania para Bruxelas" (por exemplo) estão longe da verdade. Procuram soluções para as deploradas mudanças onde elas não podem ser encontradas, nos limites do próprio domínio político parlamentar". 

A política é demasiado importante para que as forças progressistas aceitem que ela possa ser conduzida pela chamada "classe política". A democracia autêntica, participada, nada tem a ver com as democracias parlamentares tuteladas pelo capital. 

Mészáros lembra que quando a burguesia concede a representantes da esquerda o título de "grandes parlamentares" devemos desconfiar. Essas personalidades políticas "aprenderam as regras do procedimento parlamentar e, com a ajuda delas, "continuam a levantar os assuntos desconfortáveis. Entretanto, a verdade realmente desconfortável é que os assuntos assim levantados são invariavelmente ignorados ou declarados "fora da agenda" pelo próprio Parlamento. 

O pensador húngaro documenta essa realidade sobretudo com exemplos do funcionamento da Câmara dos Comuns, o berço e modelo da democracia parlamentar. "Futilidades e marginalização política são os critérios para ser promovido ao alto posto de 'grande parlamentar' na esquerda. Desse modo alguns deles são admitidos no átrio da fama para colocar o sistema da democracia parlamentar além e acima de toda a "critica legitima concebível". 

Nas últimas duas décadas os partidos social democratas europeus, incluindo aqueles que ainda se dizem socialistas (Portugal, Espanha, Grécia, etc) não somente romperam com o marxismo como, aderindo ao neoliberalismo, se orgulham de administrar melhor do que os partidos conservadores uma economia capitalista moderna, moldada pelo neoliberalismo. 

Afirma Mészáros – e identifico-me com essa opinião – que "o papel principal dos partidos social democratas (incluindo antigos partidos comunistas rebaptizados) se .limita hoje a entregar o trabalho ao capital, e utilizar o povo como forragem eleitoral para os propósitos da legitimação espúria do status quo perpetuado sob o pretexto do processo eleitoral 'aberto' e «plenamente democrático". 

Essa tendência vem de longe. Cabe recordar que o velho Partido Social Democrata Alemão, quando ainda era revolucionário, começou a ceder em vida de Marx. Prometia então uma «transformação social radical, mediante a realização de reformas estratégicas até capitular abertamente perante as exigências do expansionismo nacional burguês com a irrupção da Primeira Guerra Mundial». 

A promessa de instaurar o socialismo por meios parlamentares estava condenada desde o início. Era uma impossibilidade transformar através do parlamento "um sistema de controle reprodutivo social sobre o qual não tinham nem podiam ter qualquer controle significativo". 

Hoje, de tombo em tombo, a social-democracia contribui activamente para que a legislação dos Parlamentos seja um instrumento da castração dos movimentos laborais e dos direitos dos trabalhadores. O papel regulador básico do parlamento burguês consiste em legitimar a imposição das normas da "legalidade constitucional" ao trabalho que as desafia e simultaneamente persuadir o povo de que, agindo assim, defende a democracia. O objectivo inconfessado é forçar o trabalho a submeter-se ao capital. 

Anos atrás, quando apenas iniciava a luta que o levaria à presidência, o venezuelano Hugo Chavez — hoje o mais popular líder revolucionário da América do Sul —, repetindo criticas de Rousseau à farsa parlamentar, recordou que para os partidos tradicionais do seu país, o único dever do povo era votar nas eleições. E depois esperar que tudo se resolvesse. Sem qualquer participação popular obviamente. "Esses cantos de sereia — concluiu o actual presidente da Venezuela bolivariana — conduziram à passividade um povo que foi esquecendo que as grandes gestas se fazem pelo caminho dos sacrifícios, substância indispensável na hora de proceder às sementeiras da história. O acto do sufrágio transformou-se assim no principio e fim da democracia". 

O grande desafio de Chavez foi persuadir a sua gente de que era possível desmantelar o sistema para que o povo soberano se convertesse "em objecto e sujeito do poder". 

E isso aconteceu. 

A amplitude assumida pela revolta dos marginalizados em França, as manifestações contra a presença de Bush na Argentina e no Brasil, e, na Alemanha, em defesa de conquistas históricas do povo, são outros tantos indícios de que a maré dos protestos populares contra o sistema de dominação imperial volta a subir. Nos EUA a rejeição da guerra do Iraque cresce a cada dia. 

Não se infira da minha identificação com a critica de Mészáros à farsa da democracia representativa que pretendo retirar significado à participação das forças progressistas nos processos eleitorais. Essa seria uma atitude irresponsável. Penso pelo contrário que a presença de fortes bancadas dos comunistas e seus aliados nos parlamentos é muito importante. Repetidamente, em artigos e intervenções em Seminários internacionais tenho sustentado que na luta pelo desmascaramento das ditaduras da burguesia de fachada democrática tudo se deve fazer para reforçar a presença de representantes de partidos revolucionários nas instituições criadas pelo sistema. No caso português, a eleição de comunistas para a Presidência de dezenas de Câmaras Municipais demonstrou que nos municípios onde o povo lhes confere a oportunidade de exercer o poder, a transformação da sociedade, apesar da habitual hostilidade do governo central, reflecte quase sempre uma humanização da vida e a participação do povo como colectivo. 

No caso do Parlamento não existe a menor possibilidade na União Europeia de um partido progressista chegar ao governo, a menos que renuncie aos princípios e se submeta ao sistema, através de alianças espúrias, como ocorreu em França. Nem por isso é de subestimar em Portugal a intervenção dos comunistas. Mas — insisto — a utilidade social da presença comunista no Legislativo será sempre condicionada pela recusa de concessões a estratégias reformistas. A fidelidade ao objectivo primeiro — o socialismo distante — exige inclusive a intervenção parlamentar em defesa das lutas reivindicativas dos trabalhadores e a critica permanente às políticas dos partidos no poder. Mas exige paralelamente a denuncia firme da engrenagem do próprio sistema e a recusa de ilusões reformistas, a rejeição de uma mentalidade eleiçoeira. O capitalismo não é humanizável, tem de ser destruído. 

A credibilidade de um partido revolucionário entre os trabalhadores não resulta do simples apelo à mobilização para lutas que exigem deles enormes sacrifícios. As massas somente respondem a tais apelos quando as direcções das organizações revolucionárias lhes inspiram uma confiança quase ilimitada pela sua coerência, pela sua linha política, pela fidelidade aos princípios enunciados. 

Levar o povo português, como outros, a tomar consciência de que a actual crise global de civilização colocou a humanidade no limiar de uma viragem de desfecho imprevisível é uma tarefa gigantesca. Ela implica em primeiro lugar a necessidade de que milhões de pessoas consigam superar o envenenamento resultante de um sistema mediático monstruoso que desinforma e deforma. 

Na grande batalha contra o capitalismo, golpeado pela sua própria crise estrutural, a passagem da defensiva à ofensiva, imprescindível no combate frontal ao sistema exige — cito Mészáros — "o desenvolvimento de um movimento extra parlamentar como força condicionante total do próprio parlamento. E do marco legislativo da sociedade transnacional em geral. Tal como estão as coisas hoje em dia, o trabalho como antagonista do capital vê-se forçado a defender os seus interesses não só com uma, mas com ambas as mãos amarradas nas costas". 

Uma delas é atada por forças ostensivamente hostis ao trabalho, a outra pelas políticas reformistas dos sindicatos e, nos países da Europa Ocidental, da maioria dos partidos operários (os PC grego e português constituem quase as únicas excepções). 

Não sejamos românticos. O poder extraparlamentar do capital somente pode ser enfrentado pela acção dos trabalhadores, com o apoio dos sindicatos. 

Vale a pena citar palavras de Rosa Luxemburgo:

"o parlamentarismo é o viveiro de todas as tendências oportunistas hoje existentes na social democracia ocidental ele proporciona a base de ilusões do oportunismo, na moda, tais como a sobrevalorização das reformas sociais, a colaboração da classe e do partido, a esperança do avanço pacífico para o socialismo, etc(…) Com o crescimento do movimento laboral, o parlamentarismo converteu-se em trampolim para os políticos profissionais. Por isso mesmo, tantos ambiciosos fracassados da burguesia correm em tropel para se juntarem sob as bandeiras dos partidos socialistas(…) O objectivo é dissolver o sector actuante do proletariado na massa amorfa de um «eleitorado".

Transcorreram quase 90 anos, o mundo mudou profundamente, mas o desabafo de Rosa não perdeu actualidade. 

Hoje a luta contra o capitalismo difere da que então se travava em múltiplos aspectos. Em primeiro lugar porque ele, atingida a sua última fase, está ferido de morte, por mais lenta que possa ser a agonia. Em segundo lugar, porque, na tentativa desesperada para sobreviver, a sua estratégia põe em causa a continuidade da própria vida na Terra. É a humanidade colectivamente que o funcionamento do sistema ameaça. Incapaz de encontrar solução para a sua crise estrutural e reconstituir com êxito as condições da dinâmica expansionista, o capital, representado pelo seu pólo imperial mais agressivo, desencadeia guerras genocidas e promove o saque de recursos naturais em escala sem precedentes. 

Passar portanto da defensiva à ofensiva é uma exigência do tempo que vivemos imposta às forças e partidos para os quais a alternativa à barbárie é o socialismo.


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[1] István Mészaros, "Para Alem do Capital", págs 789 a 861, Ed. Boitempo, 2002, São Paulo, Brasil, ISBN 85-7599-001-4.  resistir.info publicará em breve o capítulo XVIII desta obra. 


(*) Jornalista e escritor português

FONTE: Resistir.info

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