domingo, 2 de fevereiro de 2014

Ucrânia: dez teses da oposição de esquerda


O texto que publicamos em seguida é da autoria de ativistas que participam na mobilização contra o governo ucraniano, rejeitando a perspetiva da direita que lidera os protestos e defendendo que o maior problema é a oligarquia predatória.

Por Coletivo da Oposição de Esquerda


A popularidade dos protestos na Ucrânia (Euromaidan) não significa que os ucranianos considerem a questão do livre comércio com a União Europeia tão significativo que os encoraje a passar noites sem dormir na praça. Os problemas socioeconómicos do país, que são muito mais graves do que os dos seus vizinhos do oriente e do ocidente, deram o significado aos protestos. O salário médio na Ucrânia é duas a 2,5 vezes mais baixo que na Rússia e na Bielorrússia, e muito mais baixo que na UE.

A crise económica afetou a economia ucraniana muito mais drasticamente que quase qualquer outra economia na Europa, do Atlântico aos Urais. O crescimento económico depois da crise praticamente congelou, e a indústria muito provavelmente continuará a declinar em 2013. Além disso, o sistema económico ucraniano isenta mais ou menos os oligarcas de pagarem impostos. É possível exportar, de forma totalmente legal, minerais, metais, amónia, trigo e sementes de girassol no valor de dezenas de milhares de milhões e declarar que não houve lucros. Todos os ganhos são escondidos em jurisdições offshore, onde quase todas as empresas ucranianas em atividade estão sediadas formalmente. Quaisquer ganhos obtidos por uma empresa no interior do país podem ser legalmente e sem esforço transportados para locais offshore, mascarando-os de empréstimos fictícios, por exemplo.

As dificuldades sistemáticas do governo ucraniano para cumprir o orçamento surpreendem alguém? No final do ano passado, a Ucrânia estava à beira da falência. Suspender o pagamento de salários dos funcionários públicos tornou-se uma prática comum, e foi praticamente suspensa a alocação de fundos do orçamento para os programas sociais. A situação foi exacerbada por uma guerra comercial com a Rússia, quando a Gazprom forçou a subida do preço do gás a níveis recorde na Europa oriental.

Os oligarcas conduziram o país para um beco; mesmo depois de discussões infindáveis, não conseguiram formular uma estratégia coerente de desenvolvimento, evitando qualquer investimento no Estado ao mesmo tempo que o exauriam. Qualquer estratégia de desenvolvimento tem de significar que os seus apetites sejam refreados – pelo menos tem de incluir o fim dos esquemas offshore e um crescimento mínimo da arrecadação de impostos. Mas é isso exatamente que os oligarcas não podem aceitar, apesar de compreenderem que se não mudarem as regras do jogo, levarão o Estado à catástrofe socioeconómica, cortando o ramo onde eles próprios estão sentados.

A oposição de direita, quando fala dos problemas económicos, concentra-se quase exclusivamente nos temas da corrupção e da ineficácia do governo. E se a conversa se vira para o facto de os oligarcas saquearem o país, procura limitá-la aos negócios que pertencem aos filhos de Yanukovich. Na opinião da direita, os outros oligarcas não representam um problema, porque têm consciência nacional. Por esta lógica, quando a Ucrânia for pilhada por um “щирый” (“autêntico” em ucraniano, nota do editor), isso será benéfico à causa nacional.

Está a abrir-se uma situação paradoxal. Todos os economistas conscienciosos (mesmo os mais neoliberais, por exemplo, Viktor Pinzenik) concordam que os sistemas fiscal e regulador do país foram construídos para isentar totalmente os oligarcas de pagar impostos. Todos veem que este sistema não pode durar muito mais, mas nenhum dos políticos no Parlamento se atreveu a propor a alternativa sistémica óbvia e realista. Quase ninguém ousa admitir em público que a questão mais urgente que a Ucrânia enfrenta não é a União Europeia ou a união comercial, mas simplesmente que os oligarcas comecem a pagar impostos. O aparelho de Estado é perfeitamente capaz de forçá-los a isso, já que os bens em funcionamento estão todos localizados na Ucrânia. Contudo, como observou recentemente Andrei Hunko, a oligarquização da política ucraniana chegou a tal proporção que nem um único dos partidos parlamentares existentes pode sequer mencionar este tema.

Infelizmente, apenas a esquerda radical levanta estas questões mínimas e óbvias. Insisto que estas bandeiras não devem ser vistas como a agenda da Oposição de Esquerda, mas sim como primeiros passos para a formação de políticas que possam reunir todas as forças antioligárquicas, que não consideram que uma ditadura fascista ultradireitista seja uma solução – o tipo de ditadura que a União de Todos os Ucranianos “Svoboda” insistentemente defende, enquanto os líderes oficiais da oposição olham passivamente.

A ausência de qualquer plano coerente de ação para ajudar a Ucrânia a sair da crise tornou-se tão premente que mesmo publicações bastante liberais, quase liberal-direitistas, começaram a discutir os nosso dez pontos – tais como, por exemplo, zaxid.net de Lvov, “Oposição de Esquerda” de Zahar Popovich.

Plano para a mudança social em dez pontos

Apresentamos um documento intitulado “Plano para a mudança social”, que delineia formas de aumentar o bem-estar dos cidadãos e garantir o progresso social. Foi criado em parte porque as manifestações do Eurmaidan ignoraram a maioria das reivindicações sociais. A nossa esperança é que este documento possa servir de plataforma para unificar uma ampla gama de iniciativas sociais, sindicais e de esquerda. Este documento foi escrito por ativistas que pertencem à Oposição de Esquerda, uma organização socialista que pretende unificar todos os que pertencem à comunidade provisoriamente chamada #leftmaidan.

Nem é preciso dizer que partidos políticos transformam o movimento de protesto e dirigem-no para a política eleitoral; tentam encontrar novas vozes, em vez de fazer mudanças significativas ao sistema. Não apoiamos as ideias das estruturas liberais, que fazem propaganda da economia de livre mercado, nem apoiamos os nacionalistas radicais que defendem políticas discriminatórias.

A nossa esperança é que o movimento de protesto, aguilhoado para a ação pela injustiça social, possa finalmente erradicar as raízes desta injustiça. Acreditamos que a causa da maioria dos problemas sociais é a oligarquia que se formou como resultado do capitalismo desenfreado e da corrupção. É importante limitar os interesses egoístas dos oligarcas, em vez de confiar na ajuda da Rússia ou do FMI, com a consequente dependência nacional. Acreditamos que é prejudicial juntar as nossas vozes às reivindicações a favor da euro-integração; em vez disso, precisamos claramente de delinear as mudanças necessárias para apoiar os interesses dos cidadãos comuns, especialmente os trabalhadores. Em várias ocasiões, citamos as experiências progressivas de uns poucos estados europeus que tomaram medidas semelhantes.

Os objetivos que criámos são relativamente moderados, de forma a poderem chegar ao mais amplo número de organizações. Não escondemos o facto de, para nós, este plano ser menos uma reação aos eventos atuais do que um passo para a formulação de uma força política de esquerda contemporânea – uma força que seja capaz de influenciar os que estão no poder e oferecer uma alternativa à ordem social existente. A Oposição de Esquerda considera que o plano proposto é o mínimo para construir socialismo nos princípios do autogoverno: a socialização da indústria, a alocação de recursos para as necessidades sociais e a eleição de cidadãos para as funções governamentais.

Apelamos a que subscrevam as nossas páginas no Facebook e no Vkontakte e deixem lá as vossas opiniões, ou enviem mail para gaslo.info@gmail.com. Substituir um grupo de políticos e oligarcas por outro sem que haja mudanças sistémicas não vai melhorar as nossas vidas. Em vez disso, o nosso grupo de ativistas sociais e sindicais propõe dez condições básicas para superar a crise económica e garantir o crescimento futuro da Ucrânia.

1. Governo do povo, não dos oligarcas

Tem de haver uma transição de uma república presidencial para parlamentar, na qual o poder presidencial seja limitado a funções representativas no nível internacional. A autoridade deveria ser transferida dos administradores do Estado para comités eleitos (sovietes). As autoridades devem ter o direito de despedir os delegados que não cumpriram as expectativas; os juízes e os chefes de polícia deveriam ser eleitos, não nomeados.

2. Nacionalização das indústrias de base

Metalurgia, mineração, além das empresas de infra-estrturas (energia, transportes e comunicações) deveriam contribuir para o bem-estar social.

3. Os trabalhadores devem controlar todas as formas de propriedade

Seguindo bem-sucedidos exemplos europeus, deveríamos construir uma ampla rede de sindicatos independentes dos trabalhadores, que controlarão a gestão e garantirão os direitos dos trabalhadores. Os trabalhadores devem ter o direito de greve (recusar-se a trabalhar quando não recebem pagamento). Os trabalhadores devem também ter o direito de obter empréstimos às custas dos empregadores se os salários se atrasarem. Os dados da produção, as contas e os balanços de gestão de todas as empresas com mais de 50 funcionários, ou com um capital de giro de mais de um milhão, devem ser publicados online.

4. Introdução de um imposto sobre o luxo

Instauração de um imposto de 50% sobre os produtos de luxo – iates, automóveis topo de gama, e outros itens que custam mais de um milhão de gryvna. Introdução de um imposto progressivo sobre os rendimentos pessoais. Indivíduos com um rendimento anual superior a mais de 1 milhão de gryvna devem ser taxados a 50%, seguindo o exemplo da Dinamarca (neste sistema, só o Renat Ahmetov teria pago 1,2 mil milhões de gryvna ao orçamento federal, comparado com os 400 milhões que ele pagou em 2013 a uma taxa de 17%).

5. Proibição de transferências de capital para offshores

As leis que isentam empresas ucranianas de impostos numa variedade de países offshore devem ser revogadas, de forma a evitar a transferência de capital para o exterior. Os bens das empresas offshore na Ucrânia devem ser congelados, e nomeada uma administração provisória até que a legalidade dos investimentos seja provada.

6. Separação entre os negócios e o governo

Cidadãos com rendimento que supere 1 milhão de grivni devem ser banidos de postos governamentais e de lugares nos governos locais. Devem ser realizadas eleições nacionais em cumprimento a esta regra.

7. Redução dos gastos com o aparelho burocrático

Os gastos do governo têm de ser controlados e transparentes. Devem ser feitas reformas administrativas, resultando na redução do número de gestores. Hoje, departamentos inteiros poderiam ser substituídos por programas informáticos. Mas, em vez disso, nos últimos oito anos o números de burocratas no governo cresceu quase 19%, compreendendo mais de 320 mil pessoas (na Ucrânia, há 8 burocratas para cada mil pessoas – em França, há apenas 5 por mil).

8. Dissolução da Berkut e outras forças especiais

Começando em 2014, deveria haver reduções de gastos no aparelho de segurança do Estado: o Ministério de Assuntos Internos, o Serviço de Segurança, o Escritório do Procurador-Geral, e as forças policiais especiais. É inaceitável que o Ministério de Assuntos Internos tenha recebido mais de 16,9 milhões de grivni em 2013 – 6,9 milhões mais do que todo o orçamento da saúde!

9. Acesso à educação gratuita e ao serviço de saúde

Os fundos para esta iniciativa deveriam vir da nacionalização das indústrias e da redução de gastos na segurança e no aparelho burocrático. Para eliminar a corrupção na educação e na medicina, temos de aumentar os salários dos médicos e dos professores e restaurar o prestígio destas profissões.

10. Saída das opressivas instituições financeiras internacionais

Apoiamos o fim da cooperação com o Fundo Monetário Internacional e outras instituições financeiras internacionais. Devemos seguir o exemplo da Islândia, que se recusou a pagar dívidas contraídas por banqueiros e burocratas (sob garantia governamental) para o enriquecimento pessoal e “doações sociais”, mais do que para o desenvolvimento da indústria.


FONTE: Controvérsia

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