sábado, 13 de dezembro de 2014

1902 - O primeiro Manifesto Socialista (*)


Por Luiz Paulo Pilla Vares 

O socialismo não é uma idéia estrangeira ao Brasil. Ele se confunde com os primeiros passos do movimento operário brasileiro. A idéia de socialismo e do partido dos trabalhadores, em nosso país, tomou corpo quase que simultaneamente com o fim da escravatura e om o inicio da República. “Dos círculos operários e centros socialistas que se criaram durante a primeira década republicana, em várias cidades do pais, principalmente na região Centro-Sul, o que mais se destacou, por sua organização e orientação, foi, sem dúvida, o Centro Socialista de Santos, fundado em 1895, por Silvério Fonte e seus companheiros do circulo de 1889” (1). 

Hoje, 90 anos após a Abolição da Escravatura, liberto de sua doença populista, o movimento operário começa a retomar sua caminhada, desta vez sobre os próprios pés. O sintoma mais evidente desse renascimento é a busca das origens, a história social do movimento dos trabalhadores brasileiros, e de seus organismos políticos (2). O outro sintoma, não menos importante, é a discussão que se faz em todos os centros sobre a necessidade de um partido politico que efetivamente represente os trabalhadores. A história escrita tem negligenciado o passado socialista, centralizando suas pesquisas basicamente em duas manifestações politicas dos trabalhadores, o comunista (que no Brasil se formou praticamente sob a influência de Stalin) (3), e a anarquista, cuja influência se fez sentir de maneira acentuada, principalmente na fase adolescente do movimento operário, cessando praticamente em meados da década de 30. Entretanto, o socialismo de inspiração marxista, mas não stalinista, está esquecido, embora a prática social tenha lhe dado outra vez uma exuberante atualidade. Se é verdadeira a frase de Hegel de que o mocho de Minerva só levanta vôo ao cair da tarde, não vai tardar muito a serem iniciadas as pesquisas sobre o socialismo democrático e suas raízes no Brasil. Nesse dia, ninguém poderá esquecer Silvério Fontes, considerado como o pioneiro do marxismo no Brasil. 

Silvério Fontes nasceu em Aracaju, no dia 1º de fevereiro de 1858, e depois de seus primeiros estudos em Sergipe, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Faculdade de Medicina. Para custear seus estudos, lecionou geometria e latim e formou-se em 1880. Com indiscutível vocação científica, o que refletia adequação ao espírito da época, escolheu como tese de doutoramento A Microbiologia, baseada em Pasteur: foi o primeiro trabalho surgido no Brasil sobre o assunto. No ano seguinte ao de sua formatura, deixou o Rio de Janeiro e seguiu para Santos, onde se destacou como cientista e lutador e teórico das causas populares.

Quando o pioneiro Silvério Fontes desembarcou em Santos, o Brasil vivia uma época de crise, em que se avolumavam os elementos materiais destinados a pôr fim às velhas estruturas daquela sociedade monárquica, cujo trono se assentava sobre relações de produção baseadas nas explorações da mão-de-obra escrava. 1881: tempo de campanha abolicionista, fundindo-se com os ideais republicanos. Tempo em que apenas as reformas liberais do sonho britânico de Joaquim Nabuco não se adequavam mais às necessidades de expansão das forças produtivas que haviam sido geradas com o crescimento urbano dos últimos tempos do Império. E Santos se constituía em um dos agitados centros de difusão das idéias abolicionistas e republicanas. Por sua formação e por sua ligação com o povo sofredor, Silvério Fontes imediatamente participou das campanhas abolicionistas e republicanas. Nessa época, o fundador do movimento socialista no Brasil ainda era adepto da filosofia positiva de Augusto Comte(4) e o jornal fundado por ele A Evolução refletia o pensamento comtista dominante entre os jovens republicanos e abolicionistas daquela época.

Silvério Fontes casou-se em Santos e logo após a proclamação da República, aos 30 anos, tinha um inegável prestígio na cidade, como cientista e pensador, além de político. Sua adesão ao socialismo veio impregnada do positivismo de Augusto Comte, mas sua formação científica e materialista possibilitou-lhe, com relativa facilidade, chegar às concepções de Marx e Engels.

Um ano após a Proclamação da República, Silvério Fontes e seus companheiros fundam o Círculo Socialista, primeira etapa do Centro Socialista de 1895, já com acentuada (e predominante) tendência marxista. O Centro Socialista, e segundo Astrogildo Pereira, seria de uma importância decisiva para a difusão das idéias socialistas no Brasil. Apesar das derrotas do Centro Socialista, que cedeu às pressões de um ambiente ainda adverso às novas ideias, Silvério Fontes e seus amigos de Santos, em contatos com outros centros socialistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, lançaram as sementes para a criação de um Partido Socialista no Brasil, ideia que germinou e teve como resultado o Manifesto de 1902, primeiro documento de um Partido Socialista Brasileiro.

Silvério Fontes viveu até 1928 (ele morreu a 27 de junho).Nunca voltou atrás em suas ideias socialistas e ainda está à espera de um estudo aprofundado  sobre sua vida de pioneiro, o que revelaria dados significativos sobre os fundamentos do socialismo no Brasil em uma época que mal acabara de sepultar o trabalho escravo.

O Manifesto de 1902 tem uma data discutível. Astrogildo Pereira supõe que seu texto original date do próprio ano da Proclamação da República (1889)  ”com uma segunda redação em 1895 e redação final em 1902”. Analisando-se hoje o seu texto, descartando-se determinadas afirmações características da época em que surgiu e das deficiências inevitáveis em um documento pioneiro, nota-se que o socialismo brasileiro surgiu refletindo, não transpondo mecanicamente um fenômeno estrangeiro mas falando uma linguagem nacional, a nossa realidade, falando de seus traumas e de suas perspectivas. O Manifesto de 1902, cuja autoria é atribuída a Silvério Fontes, não reflete também a senilidade social democrática a lá Bernstein que já andava influindo decisivamente na Europa. Este é um dado importante, na medida em que marca o nascimento do socialismo brasileiro afastado das importações mecânicas.

Hoje se coloca a necessidade histórica de um PS no Brasil, partido que somente terá sentido se nele se reconhecerem as classes trabalhadoras e que faça de seu programa o programa real do povo trabalhador. Esse partido deverá ter um lugar de honra, em sua memória histórica, a Silvério Fontes. 
______    
1 – Pereira, Astrojildo. “Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil. In: Estudos Sociais, Rio de Janeiro, vol. III/n° 12, abril de 1962. 
2 – As reedições de algumas obras como as de Everardo Dias e Hermínio Linhares, bem como o lançamento das memorias de Leôncio Basbaum e o volumoso e rico livro do brazilianist Foster Dulles, são evidências de quer há um movimento sério de pesquisa do que se poderá chamar a recuperação da memória histórica das lutas sociais no Brasil,
3 – Quando o Partido Comunista foi fundado no Brasil (1922), começaram as lutas internas do bolchevismo na Rússia e já no ano seguinte iria eclodir abertamente o conflito Trotsky-Stálin. O PC brasileiro não chegou a conhecer a democracia socialista.
4 – Outro fato Histórico que merece uma pesquisa aprofundada no Brasil é o entrelaçamento das teorias positivistas de Auguste Comte com o marxismo. Os exemplos  são muitos, mas basta citar Silvério Fontes e Leônidas de Rezende, para indicar a alta significação dessa questão teórica nos primórdios do socialismo brasileiro.  

(*) O texto acima foi publicado no Jornal VERSUS – jul.ago./ 1978.


Jornalista e escritor, Luiz Paulo Pilla Vares nasceu e desenvolveu sua atividade intelectual e politica em Porto Alegre. Bacharel em Direito, começou sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos inicios dos anos 60, tendo aderido posteriormente às posições de Trotsky e Rosa Luxembugo. Ingressou no Partido Operário Revolucionário (POR), depois na Politica Operária (Polop) e finalmente filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) tonando-se presidente municipal do partido em Porto Alegre. Foi Secretario de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos prefeitos Olivio Dutra e Tarso Genro, e no Governo de Olivio Dutra foi Secretario de Cultura do Estado. Luiz Pilla Vares faleceu em 09 de outubro de 2008, aos 68 anos de idade. É autor entre outras, das obras “Rosa, a vermelha – vida e obra de Rosa Luxemburgo, “O anarquismo: promessas de liberdade” e “Socialismo e liberdade.” (Mundo do Socialismo)

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