segunda-feira, 21 de março de 2016

A IV Internacional e o Programa de Transição



Por Rui Costa Pimenta



A IV Internacional foi fundada por um punhado de delegados em Paris, em uma Conferência Internacional que se iniciou no dia 3 de setembro de 1938.

Os militantes representavam organizações políticas em formação, algumas com apenas algumas pessoas. Sua seção mais importante, a russa, estava sob enorme repressão com milhares de militantes presos nos campos de concentração stalinista. Estas organizações encontravam-se em grande medida isoladas tanto do movimento operário em geral como do movimento que haviam contribuído a criar, a III Internacional e dos partidos comunistas em cada país.

Seu principal dirigente, o líder da Revolução Russa, organizador da insurreição de Outubro e do Exército Vermelho vitorioso na Guerra Civil encontrava-se exilado e perseguido, incapaz de participar da reunião. O terror stalinista estava no ar. Na véspera da reunião, a cabeça do secretário pessoal de Trótski apareceu boiando no Sena.

O único delegado da América Latina foi o brasileiro Mário Pedrosa, que passou a integrar o seu secretariado.

A luta pela IV Internacional

A fundação da IV Internacional deu-se depois de mais de 10 anos de luta da oposição revolucionária no interior do Estado soviético e dos partidos da III Internacional dominada pela burocracia contra-revolucionária.

A fundação da IV Internacional continua, em grande medida, até hoje envolvida na confusão das interpretações sobre os acontecimentos do período que se segue à II Grande Guerra. Para Isaac Deutscher, o mais famoso biógrafo de Leon Trótski, a IV Internacional teria sido o resultado de uma miopia teórica do grande revolucionário russo: “suas esperanças fundavam-se na dupla premissa de que a próxima guerra mundial seria seguida por uma comoção revolucionária semelhante à que havia resultado da I Guerra Mundial, mas maior ainda em amplitude e força e que os partidos stalinistas, da mesma forma que os social-democratas usariam toda a sua energia para conter a maré revolucionária. Mais que nunca via os países industriais avançados do Ocidente como o principal campo de batalha do socialismo; de suas classes trabalhadoras haveria de sair a saudável iniciativa revolucionária que poderia romper o círculo vicioso – o socialismo em um só país e o absolutismo – em que se encontrava aprisionada a Revolução Russa. Para ele, era quase inconcebível que o capitalismo ocidental, quebrantado seja pelas depressões e crises econômicas dos anos 30, pudesse sobreviver ao cataclismo que se avizinhava”.[1]

Esta análise impressionista do biógrafo de Trotski, diga-se de passagem, está na origem de muitos das enormes confusões teóricas da ideologia pequeno-burguesa de esquerda agrupada vagamente no rótulo de “marxismo ocidental”. Deutscher foi, sem dúvida, um dos seus grandes inspiradores.

Uma análise correta dos fatos do período após a guerra mostra que a análise de Trotski estava correta em todos os pontos essenciais. Somente uma metodologia pequeno-burguesa, completamente oposta ao marxismo, poderia colocar em dúvida o papel absolutamente central da classe operária européia. Curiosamente, Deutscher e os “marxistas ocidentais” tomam como ponto de partida, o caráter não revolucionário da classe operária do Ocidente. Terminada a guerra, a revolução toma conta da Europa com uma amplitude e uma intensidade que deixa muito para trás, como se fosse um mero ensaio, a onda revolucionária que se elevou após a I Guerra. Esta onda foi contida justamente conforme a previsão do fundador do Exército Vermelho pela imensa e poderosa máquina política e militar da URSS, ou seja, pelo stalinismo, em aliança com a assustada burguesia imperialista dos EUA e de sua sócia menor, a Grã-Bretanha. Para Deustcher, isto não teria acontecido, porque Stálin teria criado as “democracias populares” do Leste da Europa, ação que, Deutscher é incapaz de ver, somente pode ser compreendida como o que é, uma manobra de contenção da Revolução nos países centrais da Europa e na própria URSS, tendo em devida conta a magnitude da onda revolucionária na França, Itália e Alemanha. A falta de proporção entre os grandes fatores históricos em marcha é que permite ver de maneira deformada os acontecimentos. O que Deutscher é incapaz de compreender, como muitos depois dele, é que a política do stalinismo nos anos 40 não é contraditória, mas coerentemente contra-revolucionária. A própria ideia de que a revolução proletária mundial pudesse ter outro centro que não fossem os países imperialistas impele a que sejam colocados no mesmo prato da balança os países do Leste Europeu e os principais países imperialistas da Europa.

O período de recuperação capitalista, fenômeno a partir do qual surgiu o mito reacionário do caráter de Fênix do imperialismo, somente foi possível não apenas devido à traição do stalinismo à revolução nos anos 40, mas à sua continuada atividade contra-revolucionária nos anos posteriores. Stálin transformou em brincadeira infantil a traição dos social-democratas nos anos 20. As frente populares realizadas no anos 30 são meras miniaturas perto da aliança entre a URSS e os imperialismos inglês, norte-americano e francês.

A revolução no Oriente é erroneamente compreendida como sendo a verdadeira onda revolucionária. Seu caráter foi igualmente colossal. Basta ver o tamanho da Índia e da China para constatar a magnitude das forças que a revolução colocou em movimento nos anos 40 e 50 em todo o mundo. De uma certa forma, esta onda secundária da convulsão revolucionária foi o preço, enorme, que o imperialismo teve que pagar para manter-se vivo nas suas praças principais. No entanto, a derrota da revolução nos países imperialistas, condenava estas revoluções ao estrangulamento político.

A crise da IV Internacional, longe de estar ligada a um suposto erro de Trótski, está ligada ao fato de que os seus dirigentes, extremamente imaturos e separados do movimento operário não apenas pela organização stalinista, mas pela sua ausência de tradição, adotaram o ponto de vista impressionista de Deutscher, o qual era comum a toda uma ampla camada da pequena-burguesia de esquerda da época e que colocava em evidência uma completa miragem política: o caráter revolucionário do stalinismo.

O Programa de Transição

Além da luta pela organização da vanguarda revolucionária, a grande realização da Conferência de Fundação da IV Internacional.

Este é, sem dúvida, o mais importante documento programático da classe operária desde o Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels em 1848 e que está completando neste ano 160 anos.

Não é que os marxistas não tenham escrito inúmeros documentos da maior importância. A II Internacional contou com o programa de Erfuhrt, escrito por Kautski sob a supervisão de Engels, que consolidou as conquistas do movimento socialista à época. A social-democracia russa, da qual saiu o Partido Bolchevique teve no programa aprovado no II Congresso, de 1902, o programa escrito por Lênin e que, pela primeira vez em um programa de um partido social-democrata estabelecia claramente a luta pela ditadura do proletariado, um guia fundamental da Revolução Russa. A III Internacional teve as resoluções aprovadas nos seus quatro primeiros congressos, realizados quando Lênin ainda dirigia a Internacional. São todos documentos da maior importância para o conhecimento do que é o marxismo, do que é o movimento revolucionário da classe operária e para a compreensão da evolução da classe operária mundial.

A importância do Programa de Transição, considerado neste quadro da evolução histórica da luta e da organização operária está principalmente em que se coloca na fronteira entre duas épocas claramente distintas da evolução do capitalismo e, consequentemente, da luta revolucionária do proletariado. E, acima de tudo, que sintetiza e responde aos problemas da época com extraordinária clareza, expressando o nível de consciência alcançado pela classe operária naquele momento.

O Programa de Transição recolhe todas as conquistas da III Internacional e lhes dá forma em um programa claro para toda uma época revolucionária, a época de transição entre o capitalismo e o socialismo, época de convulsões sociais e políticas, época de guerras e revoluções.

O período de transição é a etapa de “agonia do capitalismo”, ou seja, quando o esgotamento de toda uma época histórica e um modo de produção se manifesta exteriormente nas maiores convulsões sociais e políticas.

A realidade confirmou esta caracterização cortante da etapa histórica? Disso não pode haver dúvida, mesmo levando-se em consideração o curto período de crescimento capitalista dos anos 50. Mais: o século XX foi o período das maiores convulsões sociais e políticas que a humanidade assistiu em toda a sua existência. O final do século XX mostrou esta situação da maneira mais catastrófica possível desde o início do período de transição há mais de 100 anos.

Para esta situação, ou seja, guerras e revoluções, completa desorganização financeira através de cracks econômicos e hiperinflação, para uma situação de demissão em massa, falência e fechamento de empresas, repressão fascista e outras características tão conhecidas, foram elaboradas as reivindicações transitórias, especialmente adaptadas para esta época de crise.

As reivindicações de transição não têm como objetivo a reforma do capitalismo, objetivo que se tornou ilusório com a decadência capitalista, mas “a mobilização das massas como preparação para a tomada do poder”. São reivindicações que, não saindo do marco econômico do regime capitalista, já não serão atendidas por este regime, que nada mais tem a oferecer nem à classe operária nem a ninguém.

O Programa de Transição, nesse sentido, torna obsoleta a velha divisão, base da tática social-democrata, entre programa máximo e programa mínimo. O sistema de reivindicações transitório, na realidade, anexa tudo o que mantém atualidade do velho programa, mas para mudar o seu caráter e subordinar todas as grandes e pequenas tarefas à luta pelo poder. Seu objetivo é tomar a classe operária tal como é, com um nível de consciência, ou seja, de organização política, dado, seus problemas imediatos diante da crise, e levá-la à compreensão da necessidade da luta pela tomada do poder como tarefa que decorre do próprio caráter da época. Mesmo que a luta comece em torno das reivindicações do “programa mínimo”, este último é sempre ultrapassado pela dinâmica da época de transição, de mobilização permanente em um sentido revolucionário e não reformista.

A classe operária brasileira fez uma longa experiência com os métodos reformistas da esquerda oportunista, partidária da colaboração de classe.

Tudo o que esta experiência comprovou é que os métodos “graduais”, “moderados” e “democráticos” não produziram absolutamente nenhum resultado positivo, mas empurraram as massas exploradas para uma situação de crise ainda maior, agravando as contradições sociais.

O núcleo deste trabalho “preparatório” consiste na construção do partido revolucionário da classe operária.

O capitalismo é uma fruta podre, que já ultrapassou o seu tempo devido sobre a face do planeta, mas não cairá sozinha. Esta não é a natureza dos regimes sociais históricos. Neles, os privilegiados – e o capitalismo conta com os maiores privilegiados de todas as épocas – tendem a resistir à mudança social até o seu último alento. É preciso derrubá-lo por meio de uma revolução – que sai por todos os poros da sociedade – e, para derrubá-lo, é preciso um instrumento adequado e este instrumento é o partido da classe operária.

As lutas da classe operária no período de transição são “a preparação para a tomada do poder” e a essência da preparação consiste em organizar politicamente a classe operária através de uma vanguarda revolucionária.

É esse o significado prático da grande ideia do programa da IV Internacional de que “a crise histórica da humanidade reduz-se à crise de direção do proletariado”.



[1] Isaac Deutscher, O profeta banido.


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