sábado, 13 de maio de 2017

Em defesa do materialismo histórico (*)

Por Aluizio Moreira


Tornou-se bastante comum, sobretudo no meio acadêmico, decretar-se o fim ou a falência do materialismo histórico. Os argumentos são os seguintes:

- as mudanças ocorridas no chamado mundo comunista (fim da URSS, desagregação do Leste Europeu, queda do muro de Berlim), implicariam também no fim do pensamento marxista e obviamente, por consequência, do materialismo histórico como sua parte constitutiva; 

- o materialismo histórico é portador de uma visão linear da história, segundo a qual as sociedades desenvolvem-se sempre num mesmo sentido, passando por várias etapas, necessariamente sucessivas umas às outras. 

- o materialismo histórico é entendido exclusivamente como análise econômica das sociedades, a partir das categorias modos de produção, forças produtivas, relações de produção. 

Vejamos cada uma destas argumentações 

PRIMEIRO ARGUMENTO: MUDANÇAS NO MUNDO COMUNISTA = FIM DO MATERIALISMO HISTÓRICO.

É um argumento de uma pobreza indescritível. É como se comparativamente, a crise da democracia liberal a partir de 1920 que possibilitou o advento do nazi-fascismo na Europa, pusesse fim aos princípios do liberalismo.

Aos defensores dessa brilhante conclusão, falta um mínimo de compreensão da relação teoria/prática. Desconhecem por exemplo, um princípio elementar do materialismo histórico: a prática social, que como etapa final do processo do conhecimento, deverá confirmar ou não as conclusões e generalizações teóricas elaboradas pelo pensamento. 

Todo processo de conhecimento parte da contemplação/observação viva do real para o pensamento abstrato e   deste para a prática. Posto  em   execução   o   que existia  como   pensamento abstrato, o que irá confirmar ou refutar aquele pensamento é o experimento, no caso da história, não o experimento laboratorial, mas a prática social.

Constatando-se por essa prática sua não-correspondência com o pensamento abstrato, nada mais cientifico do que reformular o pensamento e consequentemente a prática ou vice-versa, sem que isso resulte no abandono das formulações teóricas essenciais.

A instituição do socialismo na ex-URSS, e demais países do socialismo real, seguiu esse processo: tratou-se de aplicar a uma realidade, o que existia ao nível do pensamento abstrato, construído paulatinamente a partir das primeiras críticas socialistas (e não socialistas, diga-se de passagem) à sociedade capitalista dos meados do século XIX, incluindo aqui os chamados precursores do marxismo, historicamente considerados socialistas utópicos. 

Evidentemente, até a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia em outubro de 1917, nenhuma experiência de uma sociedade socialista fora possível, a não ser a Comuna da Paris de 1871 que acenou para a possibilidade dos trabalhadores assumirem o poder, abolindo os privilégios da classe dominante na época. Por outro lado, tampouco encontrava-se à disposição dos revolucionários russos, qualquer receituário elaborado pelo pensamento socialista de como seria organizada tal sociedade, a não ser princípios gerais como: a) implantação  de novos tipos de relações de produção extinguindo a propriedade privada dos meios de produção; b) estabelecimento de um novo tipo de Estado que  representasse o controle hegemônico do poder político e do poder econômico pelos trabalhadores; c) possibilidade do livre acesso das pessoas aos conhecimentos e à cultura.

Esses preceitos a serem materializados, não foram criados de forma aleatória, mas tiveram por base a crítica de uma realidade econômico-social específica: a sociedade capitalista. A apreensão dessa realidade possibilitou ao nível do pensamento abstrato, formulações de uma práxis dentro do que permitia o pensamento socialista de então (início do século XX).

Mudanças foram empreendidas, mas a prática social, em muitos casos, revelou algumas inconsistências, ou seja, a prática social não correspondeu ao pensamento abstrato. Nessa situação, o que fazer? Reorientar a prática a partir das reformulações do pensamento abstrato. Não foi o que aconteceu na Rússia após a Revolução de Outubro de 1917, apesar das políticas de nacionalização e da extinção da propriedade privada dos meios de produção, impostas pelo Estado, vistas como fundamentais e urgentes para a implantação do socialismo. Os resultados apresentados mostraram-se bastante problemáticos para aquela nova sociedade. Os dirigentes soviéticos tiveram que recuar, permitindo a entrada do capital estrangeiro, a descentralização da economia e incentivo à participação do capital privado nacional de alguns setores das produção industrial. A adoção da Nova Economia Politica (NEP), dos planos quinquenais, se resolveram alguns daqueles problemas agravados pela 1ª Guerra Mundial, como o soerguimento da economia   como um todo, deixaram outros sem serem resolvidos e até mesmo novos problemas surgiram: a burocratização, a resistência ao estabelecimento do controle operário pelos Sovietes, a centralização do poder, o gigantismo do Estado, o persistente dilema produção de bens de consumo x produção de bens de produção, o déficit habitacional. . . tudo isso contribuiu para o pioramento da situação econômico-social e política na ex-URSS, culminando com as mudanças propostas pelo Governo Gorbatchev, no sentido de reorientar os rumos daquela sociedade em direção ao socialismo.

É verdade que essas crises não se limitaram à ex-URSS, Os demais países socialistas parece que de repente “descobriram” suas próprias crises, se bem de magnitudes diferentes.  

As crises são produtos de uma realidade sob determinadas circunstancias, não são criações das ideias. Como não são as ideias que criam as realidades. Assim não é pela decretação do fim das primeiras que  os problemas das segundas serão resolvidos. Afinal não foi o marxismo enquanto sistema de ideias que produziu  a sociedade socialista do passado, mas homens reais, viventes, com todas suas potencialidades e limitações, atuando num mundo real. Não tem sentido portanto, abominar a concepção materialista das história, porque determinada realidade foi vitimada por crises ou deixaram de existir. 

SEGUNDO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRIO = VISÃO LINEAR DA HISTÓRIA

Não é de hoje que o materialismo histórico é acusado de transmitir uma visão linear da história. 

Inicialmente é necessário que entenda-se que o marxismo não deve ser visto como um sistema de ideias unívocas ou coletâneas de princípios invariáveis. Isso significa que não podemos considera-lo como um conjunto de ideias imutáveis nem como um repositório de ideias homótonas. Seria preciso que o marxismo não fosse dialético, nem refletisse um pensamento criador. A diversidade e a mutabilidade  das ideias dentro do marxismo são tão evidentes que basta ter um contato mais estreito com as produções de Kautski, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bordiga, Gramsci, Miliband, Likacs, Goldman. . .

Não negamos que alguns marxistas deixem transparecer e até mesmo admitam uma visão linear da história, mas isso não nos autoriza considerar que o materialismo histórico, necessariamente indica essa concepção.

Muitos dos que atribuem esse viés de linearidade ao próprio Marx, referem-se quase sempre a essa passagem do Prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”: “Em caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade”

Ora, admitir que são ´”épocas progressivas”, não significa dizer que um modo de produção tenha sido sucedido e venha a suceder outros predeterminadamente, naquela ordem, ou que não tenha coexistido, mas é reconhecer que as forças produtivas em cada um desses modos se apresentam em níveis distintos de adiantamento umas em relações às outras, ou seja, a máquina a vapor só poderia ter surgido  com base no conhecimento cientifico e tecnológico atingido pela sociedade moderna capitalista e não no modo feudal de produção. Assim como o moinho equipado com eixo dentado é próprio da sociedade feudal e jamais teria existido sob o modo antigo ou comunal primitivo. 

No Prefácio à edição russa do “Manifesto do Partido Comunista” em 1882, Marx, após considerar como “iminente e inevitável”  o desaparecimento “da moderna propriedade burguesa”, referindo-se à Europa, se detém no caso da Rússia czarista admitindo o florescimento do capitalismo e da “propriedade territorial burguesa.”, observando que mais da metade das terras era possuída em comum pelos camponeses, e sem querer prognosticar as transformações futuras pelas quais passaria aquele pais, refere-se à possibilidade da Comuna Rural passar diretamente “a uma das mais alta forma comunista da  propriedade fundiária”, ou seguir “o mesmo processo de dissolução que encontra sua expressão” na história do Ocidente. Ou seja, enquanto no Ocidente europeu da destruição da propriedade comunal da terra na fase de transição foi uma das pré-condições para o estabelecimento do capitalismo, na Rússia, Marx não descartava a possibilidade da passagem da sociedade ainda feudal para a comunista, ou  seguir o modelo europeu.

Bastante significativa é a abordagem feita no volume 2, Tomo I, Capitulo XXV d”O Capital” no qual o filosofo alemão trata da “Teoria Moderna da Colonização”. Após reconhecer a situação colonial dos Estados Unidos na época em que o capitalismo tinha se estabelecido na Europa Ocidental, comenta a forma escravista moderna da produção econômica naquele país americano, e aponta os obstáculos para o avanço do capitalismo naquela formação social. Não há qualquer referencia a uma possível fase comunal primitiva antecedendo o escravismo da época colonial, nem tampouco faz intermediar um período feudal necessário entre aquele escravismo  a produção capitalista que se descortinava. Mostra inclusive como o processo de acumulação originária do capital nos Estados Unidos dar-se-ia de forma diferente da que se processou na Europa, sobretudo na chamada “mãe pátria”.

TERCEIRO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRICO = ANÁLISE ECONOMICA

Tão ferrenha quanto a crítica ao materialismo histórico como visão linear da história, é a que o concebe como análise exclusivamente econômica da sociedade.

André Piettre comete o absurdo de definir o materialismo histórico como sendo “ao mesmo tempo uma visão econômica da história e uma visão histórica da economia”. Mas ao lado dos que explicitamente assim o conceituam, há os que mesmo sem considera-lo como tal, ao discorrerem sobre o materialismo histórico, implicitamente deixam transparecer essa visão, pois reduzem suas análises exatamente aos elementos econômicos sem nenhuma referência aos elementos extra-econômicos, como se esses últimos não fizessem parte da concepção materialista da história. 

Engels em carta a Bloch, escrita em setembro de 1890, assim expõe o materialismo histórico:

A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes, e seus resultados, as constituições que uma vez vencida uma batalha a classe triunfante redige etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro  dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se  num sistema de dogmas – também exercem  sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. 

Para Engels, se não houvesse essa inter-relação entre os níveis econômicos, políticos, jurídicos, filosóficos, mas apenas os fatores econômicos, analisar a história “seria mais fácil que resolver uma simples equação de primeiro grau”. 

Giorgui Plekhanov, egresso do movimento narodnik (movimento camponês na Rússia), um dos introdutores do marxismo na Rússia nos finais do século XIX, também rebateu as críticas feitas ao materialismo histórico por sua suposta predominância dos fatores econômicos. Menciona na sua obra “Concepção Materialista da História”, como elementos dessa concepção, além da economia, o direito, o regime estatal, a arte, a ciência, a psicologia social, a literatura, os ritos simbólicos. . . isso escrito em 1895. 

De onde os falsificadores do materialismo histórico tiraram essa ideia de reduzir a sociedade humana ao econômico? Pelo menos na literatura marxista em princípio isso não está presente. Sobretudo entre os clássicos.
 
OBRAS CONSULTADAS

BERBECHKINA, A. et al. Que é o Materialismo Histórico? Trad. I. Chalaguina, Moscou: Progresso, 1987.
BUKHARIN, Nikolai. Tratado de Materialismo Histórico. Trad. Edgard Carone. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d
HARNECKER, Marta. Conceitos fundamentais do Materialismo Histórico. São Paulo: Global, 1981.
MARX, Karl. Contribuição da Economia Política. Trad. Maria Helena B. Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
_________. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d. 3 vols.
MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Petrópolis: Vozes, 1988.
PIETTRRE, Andre. Marxismo.. Trad. Paulo Mendes Campos, Waltensir Dutra e Maria da Glória Ribeiro da Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 19969.
PLEKHANOV, G. A concepção Materialistas da História. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.







(*) Este artigo foi publicado originalmente sob o título "Materialismo histórico: visão econômica da História ou visão Histórica da Economia?", Campina Grande-PB, REVISTA ARIÚS,  1995, v. 6, p.5-12

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