sábado, 30 de setembro de 2017

Sua agonia, seu triunfo


Execução dos anarquistas Sacco e Vanzetti, em 1927, criou símbolos de solidariedade internacional pela liberdade



Por Roberto Amado 


Trabalhadores forma às ruas pela liberdade
do sapateiro e do peixeiro (Foto Wikipédia) 
Em silêncio eles entraram, um após o outro, na sala da morte. Caminhavam lentamente. “Viva a anarquia!”, pronunciou Ferdinando Nicola Sacco antes de ser eletrocutado. Bartolomeo Vanzetti sentou-se mudo na cadeira e apenas conseguiu gaguejar um “adeus, mamãe”. Era 23 de agosto de 1927 e o mundo assistia atônito a um dos maiores erros judiciais da história.

Na cidade de Boston, nos Estados Unidos, onde ocorreu a execução, mais de 20 mil pessoas estavam concentradas numa manifestação contra a sentença. Em Paris, 12 mil entraram em choque com a polícia, assim como em Buenos Aires, Londres e Berlim. Em Montevidéu, uma manifestação ameaçou de morte o cônsul norte-americano. A Folha da Manhã noticiava uma greve geral de operários em São Paulo em solidariedade aos dois italianos anarquistas. “Foi um dos mais importantes movimentos internacionais da história”, diz Sean Purdy, professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP).

Tudo começou sete anos antes, quando, após um duplo assassinato numa pequena cidade do Estado de Massachusetts, Sacco e Vanzetti foram presos como suspeitos. Ambos foram vítimas de um julgamento tendencioso, no qual prevaleceu sobre os fatos uma febre anticomunista que contaminou os Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, em 1917. 

“O processo judicial foi uma farsa, um ato político-ideológico”, afirma Sean Purdy. Tanto Nicola Sacco como Bartolomeo Vanzetti eram ligados ao movimento anarquista norte-americano, além de serem imigrantes italianos, num momento em que os Estados Unidos praticavam uma forte política contra a imigração. O historiador lembra que, em 1921, foi criada uma lei emergencial que reduzia o limite de imigração de 800 mil para 300 mil. 

“Na ocasião, o mundo inteiro estava sob o grande impacto da Revolução Russa e os partidos de esquerda nos Estados Unidos eram constituídos de imigrantes europeus – alemães, poloneses, italianos. Havia um consistente movimento de esquerda norte-americano naquela época: o Partido Socialista chegou a receber 3 milhões de votos nas eleições de 1911”, conta o historiador. O país estava mergulhado no medo contra as forças comunistas, anarquistas e socialistas – o red scare (temor vermelho).

Mártires

Sacco, um respeitado sapateiro, e Vanzetti, um modesto peixeiro, foram levados a um julgamento marcado por uma sucessão de arbitrariedades e erros. Para começar, nenhum dos dois conseguia se expressar fluentemente em inglês. Também pesou o fato de ambos terem se refugiado no México, anos antes, para não servir o Exército durante a guerra. Há suspeitas de que houve pressões sobre as testemunhas, ainda que não pudessem fazer plena identificação dos acusados. E o comportamento do juiz Webster Thayer foi considerado pela imprensa americana da época como “surpreendentemente imparcial”.

Os sete anos em que os amigos passaram na prisão à espera da execução da sentença foram marcados por uma sucessão de idas e vindas judiciais, resultado das pressões da opinião pública internacional contra a decisão. “Em várias cidades do mundo, houve mobilização de operários e defensores dos direitos humanos. E não foram movimentos ligados apenas ao pensamento de esquerda”, diz Purdy. No Brasil, o Congresso chegou a aprovar apoio formal aos condenados, assim como a prefeitura da capital federal, o Rio de Janeiro, para a satisfação do movimento operário. De nada adiantou. Nem mesmo a tentativa de suicídio de Sacco, que o levou ao hospital em 1923, e a greve de fome que empreendeu nos seus últimos momentos de vida.

Poucas horas antes da execução, o sapateiro deu uma declaração sobre o longo processo de erros e desacertos a que foi submetido: “Estão determinados a nos matar, sem se importar com as evidências, com a lei, com a decência. Se nos concederem um adiamento esta noite, será para nos matar na semana que vem. Vamos terminar logo com isso. Esperei sete anos para morrer sabendo o tempo todo que eles queriam nos matar”. Vanzetti citou Santo Agostinho: “O sangue dos mártires é a semente da liberdade”.

Após a morte dos dois imigrantes, transformados em símbolos da esquerda internacional, as repercussões continuaram. O caso, ao longo do tempo, deu margem a uma série de manifestações nas artes, na literatura e no Direito. Desde abordagens técnicas sobre o processo até expressões mais romanceadas. Em 1971, o diretor Giuliano Montaldo levou a história para o cinema. A exibição do filme Sacco e Vanzetti foi proibida no Brasil pela ditadura e a canção Here’s to You, interpretada por Joan Baez e incluída na trilha sonora composta por Ennio Morricone, tornou-se hino contra a repressão e a censura (Here’s to you, Nicola and Bart/ Rest forever here in our hearts/ The last and final moments is yours/ That agony is your triumph).

Últimas palavras

"Caros amigos e camaradas do Comitê de Defesa de Sacco-Vanzetti  À meia-noite de amanhã nós seremos executados, a menos que haja novo adiamento da Corte Suprema dos Estados Unidos ou do governador Alvan T. Fuller. Nós não temos mais esperança (...) Assim, decidimos escrever essa carta para expressar nossa gratidão e admiração por tudo o que vocês fizeram em nossa defesa durante estes sete anos, quatro meses e onze dias de luta (...) Apenas dois de nós vão morrer. Nosso ideal viverá em milhões de pessoas. Nós vencemos. Conservem nosso sofrimento, nossas dores, nossos erros, nossas derrotas e nossa paixão como um tesouro para batalhas futuras e para a liberdade final. Saudações aos nossos amigos e camaradas da Terra. Vida longa à Liberdade!"


Bartolomeo Vanzetti e Nicola Sacco


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