domingo, 20 de maio de 2018

Julgamentos Históricos: Sacco e Vanzetti, condenados pela ira do capitalismo norteamericano




Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram presos, acusados e posteriormente condenados à morte. No júri, antes mesmo dos debates se iniciarem, a atmosfera declarada a tal fato mostra os males de uma sociedade em crise de desenvolvimento.



Por Cidânia Aparecida Locatelli 


Estamos no ano de 1920 no Estado de Massachusetts, Estados Unidos da América. Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram presos, acusados e posteriormente condenados à morte. No júri, antes mesmo dos debates se iniciarem, a atmosfera declarada a tal fato mostra os males de uma sociedade em crise de desenvolvimento.  

Os Estados Unidos do imediato pós-guerra eram representados de forma clara pelo estado do Massachusetts, sendo que Sacco e Vanzetti eram os exemplos vivos dos problemas enfrentados na sociedade e que agora resultaria em um grande debate no qual os envolvidos se perguntam até que ponto a acusação ou absolvição não terá envolvimento com a questão política enraizada na vida desses dois italianos. 

Mas quem eram estes dois italianos? Sacco era filho de camponeses pobres italianos, emigrou para a “América” em 1908, aos 17 anos. Viveu períodos de grandes dificuldades (chegando a passar fome, desemprego e muita miséria), trabalhou em diversas fábricas, como em uma de sapatos na qual conheceu sua companheira, com quem teve seus dois filhos. Sacco chegou a participar da Federação Socialista Italiana, mas logo se envolveu com a prática sindicalista revolucionária e anarquista. 

Bartolomeu Vanzetti, por sua vez, quando jovem, teve um envolvimento com ideias religiosas e humanistas. No entanto, gostava muito de estudar e logo se desligou de qualquer instituição religiosa. Emigrou para os Estados Unidos aos 20 anos, fato que levou a uma profunda transformação em sua vida. Segundo Vanzetti, na América viu “todas as brutalidades da vida, todas as injustiças e as depravações em que se debate tragicamente a humanidade”. E decidiu dedicar-se física e intelectualmente, chegando a estudar importantes teóricos de sua época como Bakunin, Marx, Kropotkin, Gorki, Mazzini, Tolstoi, Leopardi, Darwin, dentre outros. Leu grande parte destas obras nas madrugadas, após longas jornadas de trabalho na fábrica, debruçado sobre um livro à luz de velas. Vanzetti se tornou um convicto anarquista e importante liderança no movimento operário. 


Os Estados Unidos viviam uma guerra interna marcada pelo desemprego, miséria e criminalidade, o que acabou gerando um confronto entre grupos comunistas e anarquistas e as altas classes do capitalismo norte-americano. Para se ter uma ideia, no dia 2 janeiro de 1920 realizou-se batidas policiais em 33 cidades. Foram expedidos mais de 6 mil pedidos de prisão e relacionadas os nomes de mais de 3 mil estrangeiros para deportação. Em Boston, cerca de 500 imigrantes marcharam acorrentados até a casa de correção. 

A classe média – insuflada pela grande burguesia – temia pela sua situação privilegiada. Sentia-se ameaçada pela massa de imigrantes provinda da Europa. Eram espanhóis, portugueses e, especialmente, italianos. Além de sua fisionomia e língua latinas, traziam estranhas ideias que colocavam em risco a ordem e o modo de vida norte-americano: o anarquismo e o socialismo. 

No dia 15 de abril 1920 ocorreu um assalto a uma fábrica de calçados na cidade de South Braintree, no Estado de Massachussets. Na ocasião, o agente pagador e um segurança da empresa acabaram sendo mortos. Tudo indicava que esse era mais um crime realizado por uma das muitas quadrilhas que infernizavam a vida de fabricantes e comerciantes. A “boa sociedade” impaciente e amedrontada com a escalada de violência exigia uma rápida solução para o caso. 

Algumas semanas depois, em 5 de maio, dois homens foram presos próximos de Boston. Para sua desgraça estavam armados, coisa comum para a maioria dos norte-americanos. No entanto, havia três outros fatos graves que pesavam contra eles: eram operários, estrangeiros e anarquistas. O estereótipo de tudo aquilo que não deveria ser um cidadão estadunidense modelo. Seus nomes eram Nicolás Sacco e Bartolomeu Vanzetti. De início foram acusados por porte de arma ilegal e em seguida acusados de dois assassinatos ocorridos em meados de abril do mesmo ano. 



O caso teve repercussão internacional entre as capitais europeias de Paris a Berlim, De Roma a Estocolmo, de Berna ao Vaticano. A grande imprensa americana imediatamente passou a divulgar a prisão dos “bandidos italianos” e a sua filiação anarquista como prova moral de propensão à criminalidade e delinquência. Essa erupção de opiniões próprias envolvendo um estado norte-americano só fez com que a situação dos dois se agravasse ainda mais, pois a sociedade acreditava que as sementes da anarquia poderiam brotar nos Estados Unidos (justamente neste tempo a Máfia vinha se instalando de forma assustadora e com uma crueldade impiedosa), impondo até mesmo sua lei à justiça americana. A própria justiça não é a mesma para o autóctone e o estrangeiro, sabendo que o juiz tem a tendência de valorizar muito mais as opiniões e posições dos nacionais do que a dos estrangeiros.  

O juiz nomeado para o caso é Webster Thayer, que não se mostra inclinado à imparcialidade e compreensão. Frederick Katzmann, o procurador do distrito, é um burguês agarrado as suas tradições e fiel as suas ideias, controlando as principais atividades do Estado de Massachusetts. Os advogados de defesa são Fred H. Moore e Willian J. Callahan, em defesa de Sacco; Jeremiah J. Thomas e Fred MacAnarney, por Vanzetti. O julgamento terá início no dia 31 de maio de 1921, às 10 horas, faltando ainda a escolha dos doze jurados. As dificuldades da constituição do júri logo aparecem, motivados principalmente por duas razões: alguns jurados tinham receio de represálias por parte dos amigos dos anarquistas e outros apenas não tinham interesse de se envolverem neste julgamento, que demanda muito tempo, pois os participantes não poderiam voltar às suas casas ou local de trabalho.  

Após a montagem do júri, o julgamento enfim começa com a reconstituição do caso.  A pequena cidade de South Braintree é onde se encontra uma das mais importantes fábricas de calçado, chamada Slater e Morril. Duas vezes por mês, o montante dos pagamentos dos operários é transferido de um prédio a outro da empresa por Frederick Parmenter e seu guarda-costas Alexandre Berardelli. Os dois homens deixam o prédio superior às 15 horas do dia 15 abril de 1920, onde pouco tempo depois um Buick preto para próximo a eles e descem do carro dois homens armados. Um deles usa boné e o outro chapéu de feltro, dissimulando suas feições. Sem tempo para reação, o homem do boné dispara três tiros em Berardelli e Parmenter leva um no peito. Os agressores os deixam caídos no chão, ainda vivos, pegam nas duas caixas e entram no Buick que se afasta em grande velocidade. As únicas pistas deixadas pelo assassino são um boné e as balas utilizadas no crime. 

Tais provas, porém, seriam insuficientes para criar problemas aos dois italianos durante o julgamento. Mas uma série de circunstâncias inesperadas fez com que os dois fossem acusados e agora estivessem perante o tribunal. Durante a operação “Johnson”, que prendeu Sacco e Vanzetti, fora encontrado com Vanzetti um revólver Harrington-Richardson de calibre 38, com cinco balas no carregador e com Sacco uma pistola automática calibre 32 (o mesmo de uma das balas que matou Parmenter), vinte e três balas e um rascunho que confirma a sua qualidade de anarquista. Bastou isso para que não conseguissem mais escapar da implacável série de formalidades que fatalmente os levou aos Tribunais e a uma futura condenação. A acusação é formal e caberá aos juízes determinar que pena lhes será imposta pelo crime.  

No entanto, após a prisão, a polícia tentou relacionar o ocorrido em South Braintree com um suposto roubo em South Bridgewater, sendo Vanzetti e Sacco acusados também de participarem desse delito. Sacco demonstrou durante o julgamento que estava trabalhando durante o horário desse crime, sendo absolvido do delito. Vanzetti, por instrução do advogado, permaneceu em silêncio, fazendo com que os jurados entendessem por sua culpa, levando o juiz Webster Thayer (que iria ser o mesmo juiz do caso South Braintree), no dia 01 de julho de 1920, a considerá-lo culpado por ataque à mão armada com intenção de roubar e matar, condenando-o a ficar preso pelo período entre doze a quinze anos, com um dia de reclusão e o resto do tempo em trabalhos forçados dentro dos limites do Estado de Boston.  

Inicia-se então o julgamento do caso South Braintree. Os primeiros atos acontecem em uma atmosfera hostil com muitas prisões de anarquistas que promoviam ataques de ação revolucionária nos Estados Unidos, desta forma os jurados não ignoram que eles sejam anarquistas, o que lhes traz uma condição extremamente desfavorável. Com efeito, ao invés de escolherem um advogado tradicionalista (um homem do Massachusetts) escolhem um totalmente diferente: Fred H. Moore, um homem desregrado em sua vida particular e muito ambicioso. O advogado cria um ambiente diferente ao julgamento, declarando que isso envolve toda a classe operária, o que teve efeito contrário, alimentando a hostilidade e inquietação dos “velhos capitalistas americanos” que são a essência do meio social e defendem a ordem do estado. Contratam-se ainda dois advogados americanos, os irmãos McAnarney, que colocam como condição para defender os italianos o convencimento de que eles são inocentes.  


     
   
 

Mais de 107 pessoas testemunharam que os acusados não estavam na cena do crime. Entre elas estava um garoto que vendia peixes com Vanzetti e um funcionário da embaixada italiana, a qual Sacco havia visitado no dia do crime. Tudo foi desconsiderado. As testemunhas de acusação, sob forte pressão da opinião pública conservadora, se contradiziam. De todas as testemunhas, apenas três afirmaram terem visto Sacco em South Braintree antes do acontecido. Uma afirmava que ele participou em tudo e outras duas declararam tê-lo reconhecido dentro do automóvel imediatamente após o ocorrido. Em geral, parece difícil basear-se apenas nestes elementos de identificação. Em relação a Vanzetti é a mesma coisa. Aqueles que o reconheceram, não podem dar um testemunho perfeitamente positivo.  

Um dos temas mais importantes dos debates é, sem dúvida, aquele que os jurados darão menor valor. Trata-se da controvérsia em que os peritos em balística iriam determinar se as armas e os projéteis usados no dia do crime realmente eram de Sacco e de Vanzetti. William Proctor, do departamento de Segurança Pública, está convencido não apenas da inocência de Sacco, mas também que o crime é fruto de uma quadrilha especializada e não de anarquistas em busca de dinheiro. Porém, quando questionado se a bala realmente partiu da arma do anarquista ele não descarta esta hipótese.  

Na mesma linha de pensamento segue o segundo perito citado pela acusação, Charles van Amburg, que logo trata o assunto de forma técnica e confirma que o tiro poderia ter sido disparado pela arma em questão. Do outro lado, os peritos da defesa, James Burns e Henry Fitzgerald concordam que a bala não foi disparada pela pistola, após um diagnóstico minucioso e alguns ensaios de tiro. Deste modo, termina empatada a batalha dos peritos.  

Os jurados precisavam ponderar e escolher entre as duas interpretações contraditórias. Esse caso é algo particular dentro do julgamento, pois se o revólver de Sacco não disparou a bala que matou Berardelli, desaparece um dos principais argumentos de acusação. A evidência do boné é também um indício importante perante os depoimentos insuficientes das testemunhas, mas à medida que acontecem os interrogatórios a hipótese de que algum dos assassinos usava boné é descartada.  

Após vinte e sete dias de interrogatório chega a vez dos acusados prestarem depoimento e, no decorrer dos debates, Sacco deixa-se levar pelos vários ataques do procurador Katzmann e desabafa sobre tudo o que acha e pensa da sociedade americana. Seu discurso deixa todas as pessoas estupefatas. O último ato do julgamento acontece no dia 14 de julho, trigésimo sétimo dia de audiência. Uma multidão enchia os corredores e entrada do palácio para escutar a condenação em primeiro grau de Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti, sendo os mesmos condenados à pena de morte. “Estão matando um inocente. Não se esqueçam. Estão matando dois homens inocentes”, gritou Vanzetti. Sacco, por sua vez, escreveu uma carta para seu filho no qual afirmava: “eles podem crucificar os nossos corpos hoje, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias que permanecerão”

Logo após a decretação da sentença de morte, o português Celestino Madeiros confessou ter participado do assalto em South Braintree e apresentou uma versão bastante razoável do ocorrido. Negou também o envolvimento de Sacco e Vanzetti no crime. Um policial chegou a afirmar que na época do latrocínio havia sérias suspeitas em relação a uma quadrilha de assaltantes profissionais que atuava na região. Os Morelli, como era chamada, assaltava carretas de fretes. Uma das áreas onde atuava, e na qual tinha “olheiros”, era justamente South Braintree. 

Outro policial, o agente Fred Weyand, afirmou que “era opinião corrente entre os agentes locais do Departamento de Justiça, que tinham algum conhecimento do caso, que o crime de South Braintree foi obra de um grupo de assaltantes profissionais”. Diante das novas provas, a defesa pediu novo julgamento. Entretanto, o juiz não considerou os novos fatos e rejeitou o pedido. 

Em maio de 1926 a Suprema Corte de Massachussets indeferiu os pedidos de novo julgamento. Em abril do ano seguinte – depois de sete anos de prisão – a sentença de morte foi confirmada. Nova onda de atentados e protestos se espalhou pelo país e pelo mundo. Afirmou Vanzetti: “não apenas não cometi um delito em toda a minha vida (…) como combati toda a vida para eliminar os crimes que a lei oficial e a lei moral condenam, como também o delito que a moral oficial admitem e santificam: a exploração do homem pelo homem”. E concluiu: “estou tão convencido que estou com a razão e que se vocês tivessem o poder de matar-me duas vezes e eu pudesse nascer duas vezes, voltaria a viver para fazer exatamente o que fiz até agora”. 

Vanzetti fez um apelo de clemência ao governador de Massachusetts, Tufts Fuller. Crescia a pressão internacional. O próprio ditador italiano Mussolini escreveu uma carta a Fuller pedindo que o governador agisse com humanidade. Em Nova York, 100 mil trabalhadores fizeram greve de protesto. Para desembaraçar-se do problema, o governador nomeou uma comissão especial de advogados, liderada pelo juiz Lowell, para estudar o caso e dar um parecer. Esta comissão, depois de alguns dias, confirmou a justeza da sentença de morte. A suprema corte e o presidente dos Estados Unidos recusaram o indulto. 

Somente em 23 de agosto de 1927, os condenados vão esperar na antecâmara da morte, para enfim cumprir o seu destino. Em suma, os italianos não foram condenados à morte, porém a sutileza do labirinto judicial e dos adiamentos sociais foram algumas das causas desta decisão. No dia 23 de agosto, à meia-noite e onze minutos, Sacco, e mais tarde, Vanzetti são mortos na cadeira elétrica.  

No dia seguinte o jornal comunista Humanité exibia em letras garrafais a manchete “Assassines!”. Uma grande indignação tomou conta dos operários que depredaram lojas e atacaram a polícia. O caso gerou revoltas em diversos grandes centros, como Itália, França, México, Inglaterra, Alemanha, República de Weimar, União Soviética, Brasil, Portugal, Espanha, Argentina, entre outros países. 

Morrem dois inocentes, acusados por um crime que não cometeram e utilizados como bode expiatório para combater o crescimento do anarquismo nos Estados Unidos.  

O controvertido caso foi tema de filmes e livros. O jurista Edmund Morgan, da Universidade de Harvard, investigou o processo e o julgamento durante vários anos. Em 1948, chegou à conclusão de que foi cometido um erro judicial. Nas palavras de Morgan, Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram "vítimas de uma sociedade preconceituosa, chauvinista e perversa". O governador de Massachusetts Michael Dukakis, em 23 de agosto de 1977, promulgou um documento absolvendo-os, exatamente 50 anos depois. 

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Agradecimentos especiais aos acadêmicos Bruna da Silva, Cristhian Sevegnani, Graziele da Silva, Hiara Hoffmann e William Roggie Leiria do curso de Direito da Católica de Santa Catarina que auxiliaram na pesquisa.


Diego Augusto Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Católica de Santa Catarina e autor de obras jurídicas.

Cidânia Aparecida Locatelli é Advogada, Pós Graduada em Direito Empresarial pela UNOESC, Pós Graduada em Direito Trabalhista pela UNINTER, Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, autora de artigos jurídicos em revistas especializadas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D'ATTILIO, Robert; et al. Sacco Vanzetti: Developments and Reconsiderations, 1979. Boston: Boston Public Library, 1979.

EHRMANN, Herbert B. The Case That Will Not Die. Boston: Beacon Press, 1969.

BERTIN, Charles. Os grandes julgamentos da história. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Otto Pierre, 1978. Vol. Sacco-Vanzetti – Lindbergh.

MOURA, Clóvis. Sacco e Vanzetti: O protesto brasileiro, Brasil Debates, SP, 1979.

RUSSELL, Francis. A tragédia de Sacco e Vanzetti. Civilização Brasileira,  RJ, 1966.

Disponível em: https://uniaoanarquista.wordpress.com/2014/08/22/liberdade-ou-morte-o-grito-de-sacco-e-vanzetti-ao-proletariado-internacional/. Acesso em 29 abr. 2016.

Disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=996. Acesso em 29 abr. 2016.

Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/a-historia-do-assalto-que-levou-sacco-e-vanzetti-a-prisao. Acesso em 29 abr. 2016.


FONTE: Carta Maior




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