domingo, 2 de setembro de 2018

Cultura e comunistas no Brasil



Por Marcelo Ridenti


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, Brasil



Desdobramento de um colóquio rea- lizado na USP em 2011, a coletânea Comunistas brasileiros – cultura política e produção cultural analisa a cultura política e a produção cultural dos comunistas brasileiros. Baseia-se em pesquisas recentes que buscam compreender suas contribuições e heranças, em conexão com o contexto histórico, indicando que a importância cultural dos comunistas ultrapassou os círculos e espaços restritos dos meios organizados de esquerda.

Até alguns anos atrás, o tema dos comunistas em geral ficava a cargo de memórias, ou então de obras de militantes que se tornaram acadêmicos. Agora a profissionalização universitária se estabeleceu nitidamente. Todos os onze autores e seis autoras integram a academia, treze deles como docentes. Seis são originários da USP; a UFMG, a Unicamp e a UFF estão representadas com três formados em cada uma, além de dois na UFRJ.

A grande maioria é de jovens doutores em História ou Comunicação, cujos textos apresentam diversidade de influências teóricas e metodológicas. Poucos evidenciam a existência de laços sólidos com a tradição teórica ou política marxista, mesmo considerando sua multiplicidade. Mas quase não há preocupações antimarxistas ou anticomunistas. Por outro lado, a influência de Pierre Bourdieu é praticamente nula, em contraste com a produção atual sobre cultura na sociologia e outras disciplinas.

Já se fizeram vários estudos sobre os comunistas e as esquerdas, e muitos mais acerca da cultura brasileira. Mas até recentemente eram raros os trabalhos que cruzavam os dois objetos, geralmente inspirados em autores pioneiros como Roberto Schwarz e Carlos Nelson Coutinho. Obras de Celso Frederico, Dênis de Moraes, Antonio Albino Canelas Rubim e outros deram continuidade ao estudo do tema. Na coletânea, surgem dois integrantes dessa geração: Arnaldo Contier escreve sobre a trajetória do músico Sérgio Ricardo, enquanto Martin Cezar Feijó analisa a peça de Vianninha Rasga coração, que dá margem para contrapor a tradição cultural pecebista com a contracultura emergente a partir do final dos anos 1960.

Cinco representantes de uma geração quinze ou vinte anos mais jovem também integram o livro. Seguidor da tradição analítica de Roberto Schwarz, Francisco Alambert faz uma análise crítica do tropicalismo, cuja ideologia cultural teria se tornado hegemônica no Brasil de hoje, com seu "niilismo bem posto" na indústria cultural, adaptado ao "mundo 'pós-moderno', neoliberal, antirrevolucionário, multicultural etc.". Já Paulo Cunha aproxima-se da abordagem que João Quartim de Moraes e outros fazem da esquerda militar, ao analisar a militância de Nelson Werneck Sodré no Clube Militar. Por sua vez, Denise Rollemberg, Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta, da mesma geração de Alambert e Cunha, estão mais afinados com o conjunto, como era de esperar, afinal os dois últimos estão entre os três organizadores do livro.

Denise Rollemberg analisa o tratamento da censura à telenovela O bem-amado, do comunista Dias Gomes. A primeira em cores, exibida em 1973 pela rede Globo, sofreu cortes da censura, inicialmente pontuais, aumentando no terço final da obra, após um "parecer-balanço" elaborado por um censor que mais tarde viria a ser presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de 1998 a 2001. O episódio serve para a autora demonstrar uma tese que vem defendendo em suas publicações, seguindo pistas abertas por Daniel Aarão Reis: as relações intrincadas entre colaboração e resistência da sociedade civil diante da ditadura, em contraste com a memória construída posteriormente, centrada na resistência diante do golpe e do regime que se seguiu.

Cultura política comunista

Um aspecto que aproxima o capítulo de Rollemberg ao de outros na coletânea é o uso do conceito de cultura política, originalmente formulado por historiadores como Serge Bernstein e Jean-François Sirinelli. Não é à toa que o livro se abre com um texto de Rodrigo Motta justamente sobre "a cultura política comunista", isto é, aquela inspirada na revolução bolchevique de 1917 e seus desdobramentos, marcada por traços como a crença na razão, na ciência e no progresso; os ideais internacionalistas indissociáveis da "devoção soviética"; o anti-imperialismo em geral manifestado como antiamericanismo (o que paradoxalmente geraria um aspecto nacionalista na "pregação comunista"); e a aposta num "novo homem", com uma nova moralidade. O autor aponta para as "ricas perspectivas abertas pelo prisma da cultura política", entendendo que a cultura (sentimentos, identidades, valores, tradições) influencia fortemente as decisões e ações políticas, mas evitando cair num determinismo culturalista que desprezaria a escolha individual. Ele se preocupa em abrir um diálogo com as correntes hoje dominantes na ciência política, fundadas na escolha racional, mas não com a vasta e diversificada tradição marxista nos estudos da cultura.

Ao assumir a "abordagem culturalista", Motta ressalta que ela "não implica o abandono de outras perspectivas de análise, como a história política clássica, a ciência política ou a sociologia política", mas busca lançar novas perspectivas para compreender o comunismo, combinadas às tradicionais. Resta saber se não haveria alternativas para compreender os fenômenos culturais como indissociavelmente ligados aos políticos, econômicos e ideológicos, sem abraçar visões parcelares ditas culturalistas, economicistas ou politicistas. Seja como for, conforme atestam o capítulo e o conjunto da coletânea, é um ganho pensar as questões políticas por um prisma cultural, como o historiador faz também em seu recente livro A Universidade e o regime militar – cultura política brasileira e modernização autoritária (Zahar, 2014). Trata-se de pesquisa extensa e aprofundada, com base em muitas entrevistas e documentos inéditos, que aponta as ambiguidades do regime e de seus opositores na universidade, onde a repressão foi temperada com negociação e tentativas de acomodação, envolvendo concessões mútuas, o que seria típico da cultura política conciliadora prevalecente no Brasil.

Assim como Rodrigo Motta, atual presidente da Anpuh, Marcos Napolitano vem se destacando como historiador influente. Seu capítulo "A 'estranha derrota': os comunistas e a resistência cultural ao regime militar" condensa argumentos de uma pesquisa mais extensa que resultou em sua tese de livre-docência em História, defendida na USP no final de 2011. Apresenta uma tipologia para compreender os aspectos variados dessa resistência, envolvendo quatro grupos de atores político-culturais: 1 os liberais; 2 os comunistas; 3 os grupos contraculturais; 4 a nova esquerda surgida nos anos 1970. Tais grupos, longe de representar uma unidade na oposição ao regime, mantinham entre eles alianças tensas, precárias e fluidas. Certa concepção de "resistência democrática", consolidada em meados dos anos 1970 a partir da ofensiva de artistas comunistas no front cultural, teria ficado estabelecida como a memória social predominante, gerando a "estranha derrota" dos militares no plano da memória, apesar de terem sido vitoriosos na política e no governo.

Napolitano tem buscado ajudar a construir uma nova abordagem historiográfica sobre o tempo da ditadura, propondo-se a superar o embate entre as partes envolvidas na luta da época, que teriam dado o tom para apropriações distorcidas da história e da memória. Ele procura fazer uma abordagem menos envolvida do que as "referências clássicas" sobre a resistência cultural, de autores como Roberto Schwarz, Celso Favaretto, Heloisa Buarque de Hollanda e Edelcio Mostaço. Propõe polemicamente que – a despeito de seus reconhecidos méritos – elas deveriam ser tratadas mais como fonte e objeto de estudo do que inspiração teórica ou historiográfica para analisar o período. Detalhe: raras dessas referências foram produzidas por historiadores em sentido estrito. Não só no aspecto cultural, os pioneiros na análise do tempo da ditadura foram sociólogos, cientistas políticos, economistas, jornalistas e outros ainda nos anos 1960 e 1970, no calor dos acontecimentos. Então, a obra de vários colaboradores da coletânea não deixa de expressar a apropriação relativamente tardia dos historiadores em relação ao tema, ainda que não haja aversão a aproximar-se de outras disciplinas, tanto que colegas de áreas afins participam do livro, sendo sociólogo um dos organizadores, Rodrigo Czajka.

Evoé, jovens à vista

Com base em documentos inéditos do "IPM do PCB", isto é, o processo de 157 volumes movido pelos militares contra o partido após o golpe de 1964, Czajka analisa a militância dos intelec- tuais comunistas e outros acusados de serem "adeptos auxiliares". Mostra como os intelectuais comunistas estabeleceram uma rede relativamente autônoma antes de 1964, sem uma centralização institucional. Czajka integra o polo mais jovem em que se concentra a maioria dos autores da coletânea, na faixa dos trinta anos.

Em "Quem é Zé Brasil?", Paula Soares trata das representações dos camponeses na obra de Candido Portinari, particularmente suas ilustrações para o livro de Monteiro Lobato, criador do personagem. A obra do pintor estaria afinada com as ideias comunistas sobre os camponeses. Esses teriam força e grandeza, mas dependeriam das diretrizes que recebessem do partido do proletariado para sua emancipação. Boa parte das belas imagens que abrem o livro são reproduções de obras de Portinari. Muitas delas datam dos anos 1930, quando ele ainda não era do partido e tinha ligações com o Estado Novo, aspecto não comentado no texto.

Miliandre Garcia, autora de uma tese com muitos dados inéditos sobre a censura ao teatro, escreve acerca das políticas culturais na ditadura entre 1974 e 1979, durante a gestão de Orlando Miranda no Serviço Nacional de Teatro. Ele contou com o apoio de vários artistas de esquerda, devido ao fomento às atividades dramatúrgicas. A historiadora mostra a ambiguidade da ditadura no trato das questões culturais, envolvendo ao mesmo tempo repressão e incentivo, o que gerava respostas diversas nos meios artísticos.




O grupo Casa Grande, congregando dezenas de artistas e intelectuais que orbitavam em torno do círculo comunista nos anos 1970, foi analisado por Miriam Hermeto, que o interpreta como uma frente político-cultural de resistência, cujo florescimento se esvaiu após o fim do AI-5 e a anistia de 1979.

No único capítulo que abre diálogo com experiências no exterior, Carine Dalmás compara as concepções culturais dos partidos comunistas brasileiro e chileno nos anos 1930 e 1940. Mostra que, apesar de ambos serem inspirados no socialismo soviético durante o período stalinista, isso não gerou "a univocidade e homogeneidade de suas proposições políticas e culturais", que dependeram da construção histórica específica em cada caso.

Como representante da área de literatura na coletânea, influenciado por críticos como Terry Eagleton e Raymond Williams, Eduardo Tolledal analisa O caminho de Trombas, de José Godoy Garcia, escrito nos anos 1960. O romance trata das lutas dos posseiros pela terra em Trombas, com participação de militantes comunistas. Embora marcada em parte pelas normas estreitas do realismo socialista, a obra também teria aspectos de um realismo maravilhoso que faria uma aproximação criativa entre arte e política.

Um conjunto de jovens da área de comunicação também contribui para a obra: Igor Sacramento, Marco Roxo, Mônica Mourão e Reinaldo Cardenuto. Os dois primeiros organizaram uma coletânea recentemente, intitulada Intelectuais partidos: os comunistas e a mídia no Brasil (E-papers, 2012), e outra ainda mais ambiciosa, História da televisão no Brasil (Contexto, 2010).

Marco Roxo e Mônica Mourão escrevem sobre "o pacto entre comunistas e imprensa conservadora no Brasil". Sua hipótese é que os atributos da cultura partidária, como a disciplina, o comportamento exemplar, a lealdade e a obediência à hierarquia, além da clandestinidade, geraram nos jornalistas comunistas um senso de profissionalismo que foi útil para a imprensa que se modernizava na década de 1970. Sem contar que os comunistas haviam estabelecido desde ao menos os anos 1940 uma extensa rede de publicações que faziam do partido uma escola de jornalismo para seus quadros.






Reinaldo Cardenuto analisa a dramaturgia comunista na televisão na década de 1970, mostrando como o realismo crítico foi absorvido e reformulado especialmente em telenovelas e séries da rede Globo. Enfoca sobretudo a trajetória de Vianninha e o que chama de "ilusão pecebista da brecha", isto é, a aposta de que seria possível atuar com um sentido crítico nas fissuras da indústria do entretenimento. Assumidas posições teóricas como as de Adorno, é certo que se tratava de ilusão. Algo que talvez seja questionável, se consideradas as posições de outros autores inspirados na tradição marxista para pensar a cultura de massas, como Fredric Jameson e Raymond Williams.

O mesmo tema é tratado por Igor Sacramento no capítulo "Por uma teledramaturgia engajada", privilegiando a contribuição de Dias Gomes. Para além da contraposição entre o que chama de teses da cooptação dos dramaturgos comunistas pela indústria cultural e teses que os próprios comunistas propunham de infiltração nas brechas do sistema, Sacramento considera que se tratava de mediadores culturais entre o campo político e o da mídia, negociando sua participação no sistema de comunicação, onde "se encontravam a situação e a oposição".

Em suma, a coletânea atesta que a história da cultura brasileira não pode ser compreendida sem a participação decisiva de intelectuais e artistas comunistas e de outras forças de esquerda, pelo menos entre as décadas de 1930 e de 1980. Eles atuaram significativamente nas ciências, artes e meios de comunicação, em experiências que estão sendo cada vez mais estudadas.



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Marcelo Ridenti é professor titular de Sociologia, IFCH/Unicamp. Autor de vários livros, como Brasilidade revolucionária (Unesp, 2010), e Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução (Unesp, 2014). @ – marceloridenti@gmail.com


FONTE: SciELO

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