sexta-feira, 10 de maio de 2019

A questão do socialismo - 1





 Por Wladimir Pomar


A ofen­siva fas­cista contra o ca­ráter na­ci­onal e de­mo­crá­tico (mesmo formal) da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista bra­si­leira, pro­cu­rando re­tro­cedê-la à con­dição se­mi­co­lo­nial e di­ta­to­rial, trouxe à tona, em­bora de forma en­vi­e­sada, a questão do so­ci­a­lismo. Ele­vado à con­dição de um dos prin­ci­pais ini­migos do bol­so­na­rismo, é apre­sen­tado como algo abo­mi­nável, a ser re­pe­lido, der­ro­tado e ex­pur­gado. Tudo Isso, em­bora parte da es­querda o hou­vesse re­le­gado ao es­que­ci­mento.

É evi­dente que o bol­so­na­rismo e de­mais cor­rentes da di­reita fazem uma fi­gu­ração to­tal­mente dis­tor­cida do so­ci­a­lismo e de suas va­ri­antes. Por outro lado, para ser sin­cero, essa também é uma ca­te­goria econô­mica, so­cial e po­lí­tica sobre a qual são co­muns ca­ri­ca­turas di­versas pro­pa­ladas por cor­rentes de es­querda, in­clu­sive so­ci­a­listas e co­mu­nistas.

Por exemplo, há quem acre­dite que o so­ci­a­lismo é capaz de ser criado por si mesmo. Bas­taria aguardar o avanço das po­lí­ticas so­ciais de me­lhoria do poder de compra e dos ní­veis de con­sumo da maior parte das classes so­ciais para que se ele con­cre­tize na so­ci­e­dade, prin­ci­pal­mente se tiver um forte ca­ráter de­mo­crá­tico. Se­tores da bur­guesia também acre­ditam nisso, o que os leva a com­bater as po­lí­ticas so­ciais e pender para o bol­so­na­rismo.

Ou­tros, co­nhe­ce­dores da exis­tência da con­tra­dição entre as re­la­ções de pro­dução as­sa­la­ri­adas e a pro­pri­e­dade pri­vada das forças pro­du­tivas, acre­ditam que tal con­tra­dição le­vará na­tu­ral­mente à con­quista do apoio da mai­oria do povo e à im­plan­tação do ca­minho so­ci­a­lista. O que pro­pi­ci­aria a cres­cente in­cor­po­ração so­cial da eco­nomia so­li­dária, seja dos se­tores ar­te­sa­nais das co­o­pe­ra­tivas de ca­ta­dores de lixo e de ou­tros tipos até as em­presas es­ta­tais. A pro­pri­e­dade pri­vada seria ex­tinta por seus pró­prios de­feitos.

Ou seja, há gente que mis­tura alhos com bu­ga­lhos, tanto para turvar a aná­lise do de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista que tem por base a con­tra­dição entre o de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas e as re­la­ções de pro­dução as­sa­la­ri­adas, quanto para gerar ilu­sões. Ou, em sen­tido con­trário, para des­qua­li­ficar as po­lí­ticas so­ciais que pos­sí­veis go­vernos po­pu­lares adotem para am­pliar o em­prego e me­lhorar o poder de con­sumo e as con­di­ções de vida dos ex­plo­rados.

Na prá­tica, a con­tra­dição entre as forças pro­du­tivas (força de tra­balho, equi­pa­mentos, má­quinas, tec­no­lo­gias, ci­ên­cias) e as re­la­ções de pro­dução (as­sa­la­ri­a­mento dos tra­ba­lha­dores) não é a única a im­pul­si­onar o de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo. Tal con­tra­dição, em geral, é in­flu­en­ciada por ou­tras con­tra­di­ções e também as in­flu­encia. Exem­plos disso são a luta entre ca­pi­ta­listas e tra­ba­lha­dores por au­mento de sa­lário e por ou­tras rei­vin­di­ca­ções cor­re­latas, a con­cor­rência entre os pró­prios ca­pi­ta­listas (que os em­purra para a ino­vação e o de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico), e as di­versas dis­putas com ou­tras classes so­ciais pre­sentes na so­ci­e­dade, agra­vando-as e sendo agra­vadas por elas.

De qual­quer modo, a con­tra­dição que opõe o de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas a essa es­trei­teza das re­la­ções entre pro­pri­e­tá­rios pri­vados e tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados é a prin­cipal. É ela que de­fine as ten­dên­cias reais do ca­pi­ta­lismo como for­mação his­tó­rica. Por­tanto, à me­dida que se de­sen­volve, o ca­pi­ta­lismo possui como po­si­tiva a ele­vação da pro­du­ti­vi­dade das forças pro­du­tivas. No en­tanto, ne­ga­ti­va­mente, a pro­pri­e­dade pri­vada que lhe per­mite apro­priar-se de taxas ele­vadas de mais-valia con­centra e cen­tra­liza a ri­queza em par­celas cada vez me­nores da pró­pria classe ca­pi­ta­lista ou bur­guesa.

No de­sen­vol­vi­mento dessa con­tra­dição, os países ca­pi­ta­listas mais avan­çados deram um salto es­tru­tural a partir dos anos 1970. Por um lado, re­es­tru­tu­raram suas em­presas como cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais de altas tec­no­lo­gias e in­ten­si­fi­caram o de­sem­prego es­tru­tural. Ou seja, au­men­taram a ca­pa­ci­dade de pro­dução ao mesmo tempo em que o de­sem­prego afe­tava cres­cen­te­mente não só os tra­ba­lha­dores sem qua­li­fi­cação téc­nica, mas também os qua­li­fi­cados.

Ou seja, ao mesmo tempo em que cri­aram con­di­ções téc­nicas para o cres­cente aten­di­mento das de­mandas so­ciais, re­du­ziram bru­tal­mente a ca­pa­ci­dade desse aten­di­mento ao criar massas de de­sem­pre­gados e tornar mais evi­dente o sig­ni­fi­cado ne­ga­tivo da con­tra­dição entre as forças pro­du­tivas em cons­tante de­sen­vol­vi­mento e a emer­gência de massas hu­manas ex­cluídas do tra­balho, do es­tudo e das con­di­ções bá­sicas de vida.

Para pi­orar, os países ca­pi­ta­listas avan­çados, em es­pe­cial o norte-ame­ri­cano, re­es­tru­tu­raram ra­di­cal­mente sua ex­por­tação de ca­pi­tais. In­ten­si­fi­caram não só a ex­por­tação de pro­dutos fi­nan­ceiros es­pe­cu­la­tivos, mas também de plantas in­dus­triais, seg­men­tadas ou com­pletas, para países de mão-de-obra mais ba­rata. Com isso, in­ten­si­fi­caram não só a trans­fe­rência de di­vi­dendos para suas ma­trizes, mas também o de­sem­prego em seus ter­ri­tó­rios.

Di­zendo de outro modo: por um lado o uso de tec­no­lo­gias (tra­balho morto) ofe­receu cres­centes con­di­ções para atender a todas as ne­ces­si­dades hu­manas. Por outro, a apro­pri­ação pri­vada desse tra­balho morto elevou a con­cen­tração e a cen­tra­li­zação do ca­pital (vide a emer­gência das cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais), in­ten­si­ficou a queda da taxa média de lucro, levou o ca­pi­ta­lismo a pro­curar na mul­ti­pli­cação fic­tícia do di­nheiro a fonte de ele­vação de sua lu­cra­ti­vi­dade, am­pliou a pos­si­bi­li­dade de crises fi­nan­ceiras e es­tru­tu­rais, re­duziu in­ten­sa­mente a ne­ces­si­dade de con­tratar força de tra­balho hu­mano (tra­balho vivo) e am­pliou as massas hu­manas des­pro­vidas de con­di­ções de tra­balho e de vida.

Basta re­parar na atual si­tu­ação do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano, com sua in­tensa subs­ti­tuição do tra­balho vivo por tra­balho morto, enorme acu­mu­lação da ri­queza, grande parte fic­tícia, au­mento brutal da mi­se­ra­bi­li­dade da classe tra­ba­lha­dora, li­qui­dação cres­cente do mer­cado con­su­midor e ge­ração de crises cí­clicas des­tru­tivas, como as que vêm aba­lando o mundo desde 2007-08. Dei­xado a si pró­prio, o ca­pi­ta­lismo tende a gerar crises cres­centes em seu modo de pro­dução e pode levar a um co­lapso geral. E como se torna cada vez mais um modo de pro­dução pla­ne­tário ou global, também tende a levar o mundo e a es­pécie hu­mana ao co­lapso.

Por outro lado, essas ten­dên­cias ca­pi­ta­listas aguçam as con­tra­di­ções que opõem a classe dos tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados e ou­tros se­tores so­ciais à classe pro­pri­e­tária ca­pi­ta­lista. Par­tindo da luta pela re­dução do grau de ex­plo­ração e da do­mi­nação da bur­guesia, essa con­tra­dição pode cul­minar na ne­gação da pro­pri­e­dade pri­vada e sua subs­ti­tuição pela pro­pri­e­dade so­cial, trans­for­mando o ca­pi­ta­lismo numa for­mação econô­mico-so­cial su­pe­rada.

Em so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas avan­çadas, essa luta das classes ex­plo­radas pode trans­formar o modo de pro­dução ca­pi­ta­lista num modo que tenha por base o tra­balho de má­quinas tec­no­lo­gi­ca­mente avan­çadas. A cir­cu­lação de seus pro­dutos pode atender a todas as ne­ces­si­dades so­ciais e sua dis­tri­buição pode atender às ne­ces­si­dades in­di­vi­duais de todos e de cada um dos mem­bros da so­ci­e­dade. Com isso, a es­pécie hu­mana pode ser li­be­rada para ad­mi­nis­trar o aten­di­mento das ne­ces­si­dades so­ciais e in­di­vi­duais e apro­fundar o tra­balho ci­en­tí­fico, tec­no­ló­gico e cul­tural.

Os so­ci­a­listas ci­en­tí­ficos acre­di­tavam que, his­to­ri­ca­mente, essa trans­for­mação de­veria ocorrer pri­meiro nos países ca­pi­ta­listas avan­çados, o so­ci­a­lismo não pas­sando de um breve in­ter­regno de tran­sição do ca­pi­ta­lismo para o co­mu­nismo. Mas isso não ocorreu assim. O so­ci­a­lismo se apre­sentou prin­ci­pal­mente como so­ci­e­dade de tran­sição de países atra­sados do ponto de vista ca­pi­ta­lista, com va­ri­a­ções muito mais com­plexas e va­ri­adas do que se su­punha.

Aliás, o pro­cesso his­tó­rico de evo­lução e trans­for­mação da hu­ma­ni­dade nunca foi li­near. A pas­sagem dos es­tá­gios pri­mi­tivos da caça e pesca, da re­vo­lução agrí­cola e pe­cuária es­cra­vista para o in­ter­mezzo da ser­vidão e da re­vo­lução in­dus­trial ca­pi­ta­lista, re­sultou numa mi­ríade de povos em es­tá­gios di­fe­rentes de de­sen­vol­vi­mento econô­mico, so­cial e po­lí­tico, nem sempre os mais avan­çados saindo na frente.

Atu­al­mente, a grande mai­oria dos povos já vive sob o guante do modo de pro­dução, cir­cu­lação e dis­tri­buição ca­pi­ta­lista, mas suas formas e seus ní­veis de de­sen­vol­vi­mento são de­si­guais e des­com­bi­nados. Al­gumas poucas na­ções ca­pi­ta­listas são muito de­sen­vol­vidas, per­mi­tindo que ajam de forma im­pe­ri­a­lista em re­lação às de­mais. A mai­oria ainda é atra­sada, ou me­di­a­na­mente de­sen­vol­vida, e apre­senta ca­rac­te­rís­ticas de de­pen­dência, su­bor­di­nação e/ou des­na­ci­o­na­li­zação.

Mesmo assim, foi jus­ta­mente a pers­pec­tiva de in­de­pen­dência e de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal, econô­mico, so­cial e po­lí­tico que em­purrou vá­rias delas a adotar algum tipo de ca­minho so­ci­a­lista, que nada tem a ver com o mar­xismo cul­tural ou ou­tros brincos ide­o­ló­gicos do bol­so­na­rismo.

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