domingo, 9 de fevereiro de 2020

A hipótese do Comunismo Hermenêutico



Dois filósofos propõem: para voltar a ser potente e perigoso, marxismo deve deixar pretensão à verdade histórica e assumir-se como imperativo ético, espectro que convoca seres humanos a novas relações entre si e com a natureza




Por Eleutério F. S. Prado | Imagem: Frida Kahlo,O marxismo dará saúde aos doentes (1954)


A palavra comunismo tem vários sentidos, ainda que um deles predomine no entendimento popular. Nessa acepção mais usual, designa o finado sistema burocrático de Estado que se instalou na Rússia depois de 1917 e se estendeu para vários outros países com o fim da II Guerra Mundial (Iugoslávia, Alemanha Oriental, Polônia etc.) formando o chamado “bloco soviético”. Como se sabe, o comunismo nesses países terminou entre 1989 e 1991. Mas esse nome, ainda hoje, aplica-se aos regimes políticos ainda existentes na China, Coreia do Norte, Vietnã, Cuba. Como também é bem sabido, nesse sentido mais ordinário, ele está associado frequentemente ao autoritarismo de Estado, à ditadura ou mesmo ao totalitarismo.

Entre os marxistas, no entanto, essa palavra é entendida teoricamente como um conceito; refere-se ao modo produção que desponta no futuro de um desenvolvimento virtuoso que começa com a superação do capitalismo. Nesse sentido, é entendido como o estágio superior do socialismo. Segundo o Marx da Crítica do programa de Gotha (Boitempo, 2012), se este último vem para abolir a propriedade dos meios de produção, como nasce no interior da “velha sociedade”, limita-se a proporcionar bens e serviços a cada um segundo a sua capacidade de produção, ao seu trabalho. Mas cria as condições para um modo de produzir e distribuir mais avançado, que é caracterizado pelo lema “de cada segundo suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. No comunismo, não haveria segundo essa doutrina nem escassez e nem classes sociais.

Registre-se, porém, que nenhum desses países elencados conseguiu caminhar verdadeiramente em direção ao comunismo assim delineado. E nem poderiam fazê-lo, já que a sua premissa histórica é que os trabalhadores, já na sociedade em construção, deveriam se encontrar livremente organizados com base em Comuns instituídos como tais. Bem ao contrário, em alguns deles, ao invés de emancipação, como era prometido pelos movimentos revolucionários, realizaram-se alguns dos piores regimes da história. . De qualquer modo, em nenhum deles foi instituída uma democracia que fosse superior à democracia liberal – muito ao contrário. E esta – como bem se sabe – é e tem sido pródiga em violências e perversidades…

A expressão “comunismo hermenêutico”, portanto, pode soar bem estranha para muitos, não só por causa do adjetivo que qualifica o nome, e que significa algo como “interpretativo” – mas também porque esse substantivo reaparece de um fundo de ineficiência, propaganda enganosa e opressão. O fato é que ressurge agora no título de um livro publicado no começo da última década, escrito por Gianni Vattimo e Santiago Zabala. A obra pretende resgatar o caráter emancipatório da proposta comunista, com que ela estava associado no. Eis o título completo do escrito: Comunismo hermenêutico – De Heidegger a Marx (Herder, 2012). Ora, a associação do conceito de comunismo ao filósofo alemão que aderiu ao nazismo na década dos anos 1930 torna essa expressão ainda mais estranha.

Antes de avançar, é preciso apresentar uma tipologia que se encontra no livro Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval (Boitempo, 2014). Esses dois autores apresentam as grandes compreensões do comunismo na forma de três tipos ideais: como um ideário baseado na formação de comunidades de iguais, como auto-organização democrática dos trabalhadores em geral e como um regime de partido único que domina o Estado e a própria sociedade.

A primeira concepção, segundo Durkheim – que citam –, nasceu em A República de Platão. A sua tese básica é que o comunismo consiste numa utopia transistórica. Eleorienta as ações humanas em busca da realização de comunidades de pessoas que se têm por iguais e que, por isso, vivem e consomem em comum. Essa concepção, é de se notar, funda o cristianismo primitivo e se encontra em várias passagens da Bíblia. Em última análise, funda-se na ideia de uma totalidade ética.

A segunda compreensão de comunismo surge na sociedade moderna visando superar as relações sociais indiretas e alienadas – mediadas que estão pelas mercadorias e pelo dinheiro – entre os seres humanos. Para Durkheim – afirmam Dardot e Laval – essa concepção dá origem ao socialismo contemporâneo. Ela não se vê como uma utopia, mas como um princípio ativo que transforma a sociedade atual visando constituir uma nova sociedade caracterizada por relações sociais diretas. É como uma associação democrática de trabalhadores livremente organizados que o socialismo aparece em O capital.

A terceira concepção é aquela que se cristalizou no século XX, em várias nações, por meio das revoluções comunistas. Estas fizeram existir Estados que não apenas assumiram o monopólio da violência, mas também passaram a ditar as formas de existência da sociedade, assim como dos discursos na esfera política, das artes e da cultura, enfim, do presente e do futuro das nações que, sob o jugo de burocracias,apresentavam-se como comunistas. Se esse resultado foi possível – creem Dardot e Laval – é porque havia falhas na política do marxismo e em sua compreensão da história.

A tese de partida de Vattimo e Zabala é que o comunismo surgiu com um espectro que amedrontava a grande, a média e a pequena burguesia no século XIX, mas que agora ele aparece apenas com um fantasma do passado que já não assusta nem mesmo os anticomunistas mais paranoicos. Com base nessa constatação inicial, eles querem explicar por que ocorreu essa mutação, por que houve esse deslizamento em seu significado original e por que “a hermenêutica traz consigo a possibilidade de renovar o potencial do comunismo no mundo atual”.

Segundo os autores, havia no comunismo histórico uma debilidade constitutiva: o seu caráter autoritário e violento, mesmo quando se leva em consideração as limitações em que nasceu e se desenvolveu, sempre estiveram em contradição com as suas promessas emancipatórias. Ora, essa sua falsidade constitutiva, decorria do fato de que nunca passou de um projeto metafísico e cientificista: tal como o liberalismo, esse comunismo era produto de uma “filosofia absoluta da história, dominada pela ideia de progresso”.

Se o liberalismo pretendeu sempre estar baseado em leis naturais e, portanto, verdadeiras, do evolver e do funcionamento da economia de mercado, o comunismo realmente existente se fundou numa admitida lei de transformação da história. Eis o que disse para si mesmo e repetiu inúmeras vezes até que ficou plenamente convencido do rumo inexorável dos acontecimentos: por meio da ação das forças sociais, da luta de classes, ocorrerão dois partos: o capitalismo gerará o socialismo e este, por sua vez, fará nascer o comunismo!

Desse modo, tanto os capitalismos quanto os socialismos que ainda existem ou existiram aparecem como realizações que provêm das ações e lutas dos seres humanos, mas que se mantêm e prosperam porque estão ancoradas em metafísicas – e por esse conceito se entenda aqui “políticas socioeconômicas que têm seu fundamento numa verdade objetiva da história”. Como se sabe, a palavra “metafísica” designa usualmente um modo de pensar que concebe o “ser do ente”, ou seja, das coisas como tais, como estável, objetivo e permanente, podendo ser apreendido como uma “verdade objetiva”, como uma “verdade definitiva”.

Ora, segundo os autores, tanto a revolta global de 1968 quanto a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética anunciaram e mesmo realizaram a dissolução real e geral da metafísica no plano da história. No plano da filosofia, Marx e em especial a teoria crítica de Adorno e Horkheimer por um lado; Nietzsche e Heidegger por outro, fizeram uma crítica devastadora das correntes metafísicas desde Platão até Hegel, por um lado, e Husserl por outro.

Vattimo e Zabala parecem pensar que essas filosofias metafísicas não apenas interpretaram o mundo, mas ajudaram também a governar as práticas nas sociedades que se sucederam, grosso modo, desde o século IV a.C. até o século XX d.C. Mas, o que nasce afinal de seu falecimento tardio? Nascem, segundo eles, as filosofias hermenêuticas que se apresentam sempre como esforços de interpretação histórica, endógenos à própria história, e não como conhecimentos objetivos que se pretendem verdadeiros, universais e transistóricos. Nasce, também, a possibilidade de reorientar virtuosamente as transformações históricas.

Para eles, “a crise do comunismo soviético – assim como a crise atual que o capitalismo neoliberal que enfrenta – requer do marxismo uma virada hermenêutica”. Os seus grandes erros, os seus descaminhos, as suas formas de governo autoritárias e totalitárias decorreram – ainda segundo eles – de uma incapacidade intrínseca de apreender e considerar a subjetividade coletiva das populações nos países que se tornaram socialistas no século XX. Ele estava ciente de uma verdade da história e, por isso, achava-se no direito de impor ferreamente à população governada o caminho do desenvolvimento econômico e social.

A lógica cientificista atuou para elevar as forças produtivas por meio da economia centralizada, sem respeitar a complexidade dos processos de produção e das demandas econômicas, assim como os pleitos democráticos em prol da participação política na construção de uma vida boa. Considerou, assim, estupidamente, que uma consciência de classe socialista surgiria mecanicamente do próprio progresso material da sociedade.

O que representa essa retomada possível do comunismo? Para eles, como não poderia existir efetivamente uma sociedade sem classes em geral, sem diferenças e sem conflitos, o comunismo não se afigura como um Estado objetivo que vai se realizar num certo momento do futuro. Também a tese do desaparecimento da escassez que lhe é constitutiva parece irrealizável. Porém, se não é possível, dizem, “imaginar um mundo onde o comunismo se completou, tampouco se pode renunciar a esse ideal como um princípio regulador e inspirador de decisões concretas”. A ideia, para eles, de uma revolução ou de um processo histórico que se fecha e se completa é já, implicitamente, uma pretensão que tende a se converter num poder despótico.

O comunismo – afirmam – é, no entanto, um imperativo ético a que não se pode renunciar sem ceder na prática a alguma forma de opressão. Assim, “o comunismo é uma utopia ou, como disse Benjamim, trata-se de um projeto de poder messiânico e débil” – débil porque não pode ser imposto por uma vanguarda sem contrariá-lo em princípio.

A tese de Vattimo e Zabala pode suscitar muitas dúvidas e muitos debates. Não se pode julgar que pode ser bem compreendida numa resenha que não abrange todas as sendas teóricas e práticas que o livro apresenta. Esses autores, por meio de uma linguagem abissal típica de Heidegger, mencionam, por exemplo, que veem “no comunismo e na hermenêutica o destino de um acontecimento, uma espécie de chamamento do ser (…) que não é inventado ou descoberto, mas que recebem e lutam para responder”. Porém, essa convocação, enfatizam, não é misteriosa ou transcendente. Ao contrário, diz respeito à urgência do tempo presente.

Por isso, diante do interesse nessa temática, é preciso conceder-lhes aqui a palavra por extenso: “é preciso ver que o comunismo deve servir agora de “espectro”, isto é, não como um programa político que propõe novos caminhos racionais para um crescimento sem restrições; mas sim como um movimento que abraça a causa programática do “decrescimento” como a única maneira de salvar a espécie humana. Assim, a função de espectro – que perturba e altera a rotina serena daqueles que, como Hamlet, colhem os frutos de sua violência – é útil para sacudir as consciências daqueles que preferem não admitir as consequências funestas do capitalismo.”

Em consequência, “o comunismo jamais poderá se apresentar como uma força radical revolucionária”. Deve também “pôr um fim ao reformismo” atual da esquerda, já que este não tem obtido mais quaisquer avanços nas “democracias estancadas” do Ocidente. “Uma sociedade sem classes e, em consequência, capaz de viver em paz é o ideal que deve reger a luta comunista no mundo”. “A sua completa realização não é imaginável”. Sempre existirá, portanto, uma lacuna entre o ideal e o real comunista que o “vínculo indissolúvel entre teoria e práxis” não poderá preencher. “Ao fim e ao cabo, o Messias, como Jesus ensina nos Evangelhos, jamais se deixa fixar de forma conclusiva”.

Posto esse resumo heroico do livro de Vattimo e Zabala, é preciso voltar a Dardot e Laval já que eles se concentram num tema menos enfatizado pelos dois primeiros: eis que propõem que é preciso lutar, mediante ações políticas, para libertar os comuns tanto dos mecanismos do mercado quanto da captura pelo Estado. Aderem, portanto, à segunda concepção antes mencionada, sugerindo que não se pode abandonar a ambição de democratizar mais e mais não apenas a esfera política, mas também o mundo econômico e social em geral. E essa alternativa recebe atualmente a denominação mais precisa de socialismo democrático.

Antes de terminar é preciso arguir que essa opção de Dardot e Laval implica em compreender a história em geral e, em particular, o desenvolvimento capitalista, com base numa ciência, numa cientificidade crítica para ser mais preciso – e não com base num saber meramente hermenêutico. A ciência concede que todo saber é interpretativo e que está dentro de uma tradição, mas, apesar disso, não recusa e não pode recusar o caráter objetivo do conhecimento, ainda que o pense sempre como provisório e sujeito a erro, ou seja, falível. Ora, a ciência também recusa a tese metafísica de que existem “verdades objetivas”, fixadas para sempre e transistóricas, em qualquer área do saber; mas ela não pode desistir de pressupor a objetividade do conhecimento.

De qualquer modo, a ambição de instituir formas de associação livre dos sujeitos sociais, para eles, implica que as pessoas em geral não possam mais estar a-sujeitadas nem à lógica acumulativa do capital, que se manifesta por meio dos mercados, nem ao domínio abrangente do Estado, que quer substituir a concorrência por um comando administrativo total. Para Dardot e Laval, os seres humanos têm de se libertar dessas duas fontes de heteronomia, dessas duas metafísicas reais: o Capital e o Estado.

Para eles, a organização social e a forma da política devem seguir o princípio do Comum. É assim que denominam a norma política geral que leva à instituição dos comuns efetivos e preside a construção e a difusão de formas de autogoverno na prática. Na sociedade boa, os lugares de trabalho (não alienado) devem ser postos como comuns, as formas de lazer, de criar cultura e arte têm de ser participativas, a própria democracia deve estar na raiz da instituição dos Comuns. Comum é também o ar e água que devem ser preservados para haja vida em comum – ou seja, para que não sejam sistematicamente degradados como acontece agora.


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