quinta-feira, 7 de maio de 2020

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático [II]



Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação



Por David Sessions, no Dissent| Tradução: Inês Castilho






O Estatismo Autoritário

À medida em que Poulantzas debatia a natureza do Estado, desde o final dos anos 1960 e durante os 70, o consenso pós-ideológico do pós-guerra começava a ser desfeito. Movimentos de esquerda com novas ideias brotavam por todo canto, ao mesmo tempo em que aumentava a filiação nos partidos comunistas e social-democratas tradicionais, aparentemente colocando-os no caminho do poder institucional. Mas em quase toda parte, os passos do socialismo em direção ao poder eram respondidos com uma reação brutal. O medo de um governo de esquerda levou a um golpe militar na Grécia em 1967, e o governo socialista eleito democraticamente de Salvador Allende no Chile foi esmagado por um golpe semelhante – igualmente apoiado pelos EUA – em 1973. No final da década, uma crise econômica complicou ainda mais a situação, anunciando um longo período de recuo do uso do poder estatal para projetos igualitários e de distribuição de renda.

Poulantzas destacou-se entre os pensadores dos anos 1970 ao ver nas ditaduras militares e o início do neoliberalismo como parte de um único cardápio de opções que os governos capitalistas tinham em resposta à crise política e econômica. Há uma visão que persiste obstinadamente, de que a ordem político-econômica dos anos pós-1970 envolvia um enfraquecimento dos Estados-Nações: de que as grandes corporações exigiam a retirada da intervenção estatal na economia, enquanto um sistema cada vez mais global possibilitava aos capitalistas esquivar-se dos governos nacionais. Para Poulantzas, o neoliberalismo era só uma face de uma volta mais ampla que ele chamava “estatismo autoritário”, uma combinação do poder gerencial do Estado keynesiano com um recuo estratégico de algumas de suas funções anteriores. As novas táticas do Estado incluíam submissão deliberada a instituições internacionais antidemocráticas, políticas econômicas que tornaram a vida mais atomizada e precária, e intensificaram a vigilância e a repressão. Em situações extremas, especialmente em países dependentes de maiores poderes “imperialistas”, a crise econômica poderia levar a “formas excepcionais” de capitalismo, como o fascismo ou a ditadura militar. Nos países liberais democráticos avançados, era provável que parecesse uma combinação mais sutil de internacionalismo seletivo, tecnocracia intensificada e violência policial.

No início de sua trajetória, Poulantzas ressaltou a importância de localizar a posição de cada nação numa “cadeia imperialista” global para compreender a forma particular que seu Estado precisava tomar para reproduzir o poder de classe capitalista. Nos anos 1970, ele focou particularmente na dependência emergente dos Estados europeus e suas classes dominantes em relação ao imperialismo dos EUA, expresso no crescente investimento de capital norte-americano na Europa durante os anos 1960. Não era suficiente para a esquerda europeia concluir que a crise do “capitalismo monopolista” estava destinada a destrui-lo desde dentro, como sustentavam muitos partidos comunistas. Por razões estratégicas, eles precisavam entender as relações específicas do imperialismo e as crises que produzia, incluindo as relações entre o “imperialismo de metrópoles” dos Estados Unidos e Europa. O capital norte-americano, argumentava Poulantzas, aumentara sua influência sobre a Europa por meio de investimentos diretos em setores em que as corporações norte-americanas já exerciam um controle internacional altamente consolidado. Ao fazê-lo, conseguiram exercer uma influência econômica ainda maior, definindo padrões para as matérias-primas, insistindo na reorganização do processo de trabalho e na imposição de certas ideologias de gestão.

A resposta para a nova dependência da Europa ou “imperialismo de satélite” não era, como até mesmo alguns liberais franceses argumentaram, a de um Estado-Nação versus “corporações multinacionais” ou, como alguns esquerdistas imaginaram, a oportunidade para uma coalizão que alinhasse a burguesia nacional com a esquerda, contra as forças dominantes do capital internacional. A despeito da internacionalização da economia e do crescimento das instituições supranacionais como a Comunidade Econômica Europeia, Poulantzas insistia que o Estado nacional ainda era o lugar principal da “reprodução” do capitalismo. O próprio aumento de instituições supranacionais era simplesmente parte da transformação do papel do Estado nacional no gerenciamento da economia, facilitando a internacionalização econômica como parte de seus esforços em benefício de sua classe dominante nacional.

Mas agir como o agente principal da internacionalização colocou o Estado nacional capitalista numa posição particularmente vulnerável a crises – e com um leque limitado de respostas. A internacionalização enfraqueceu a unidade das classes dominantes domésticas, conforme o Estado agia em beneficio de certas frações do capital às expensas de outras. Isso colocou em risco a unidade ideológica da nação, apoiando o desenvolvimento econômico desequilibrado dentro do seu próprio território — como ilustrado pela nossa situação atual,  em que megacidades em expansão impulsionam a economia global, enquanto as pequenas cidades e as áreas rurais sofrem um despovoamento e declínio dolorosos. Essas contradições por certo causam tensões políticas e revolta, porque destroem o mito de que o Estado é um árbitro neutro em benefício de toda a nação. (Eles podem, por exemplo, levar as pessoas a pensar sobre “nacionalistas” versus “globalistas”.) “Num certo sentido, o Estado é pego em sua própria armadilha”, escreve Poulantzas. “Não estamos lidando com um Estado todo-poderoso, mas antes um Estado com as costas na parede e a frente posicionada diante de uma vala.

“Estatismo autoritário”, então, era um termo genérico para o tipo de governança capitalista que emergiu no período de pós-guerra e foi apenas acentuado pelas crises políticas e econômicas dos anos 1970 e o aumento da militância popular. Ele usava deliberadamente o termo como um amplo substituto para o que parecia ser a transformação do Estado capitalista: a mudança massiva do poder dos parlamentos para o executivo, o declínio dos partidos políticos tradicionais, a mudança de cada vez mais funções de Estado – de instituições representativas para aparatos burocráticos permanentes controladas pelo poder executivo. Tinha também dimensões de repressão direta: o aumento do uso da violência policial e militar contra populações domésticas, restrições arbitrárias das liberdades civis e o surgimento do governo em base emergencial que transcendia – às vezes permanentemente – o “Estado de direito” normal.

O Estado, o poder e o socialismo (State, Power, Socialism, 1978) foi a principal atualização de Poulantzas a sua teoria do Estado capitalista. Na obra, uma de suas principais tarefas foi pensar através da teoria do poder do filósofo francês Michel Foucault, e articular como o estatismo autoritário, como ele chamou mais tarde, trouxe uma mudança da “força bruta organizada para a repressão internalizada”. Ao contrário de Foucault, contudo, Poulantzas insistiu que tais técnicas disciplinadoras, embora sejam levadas por meio do Estado, são em última análise ligadas de novo à exploração econômica e poder de classe. Poulantzas já havia argumentado que separar o político do econômico, com sua decorrente criação de indivíduos legais atomizados, era parte da infraestrutura do Estado capitalista. Em O Estado, o poder e o socialismo, ele reiterou que dividir os indivíduos para a dominação econômica é o papel primordial dos Estados liberais. Eles institucionalizam continuamente essa fratura, reforçando-a ideológica e materialmente. Em outras palavras, o Estado usa suas próprias práticas para produzir o indivíduo neoliberal. Velhos marcadores de hierarquia social e relacionamentos são substituídos por normas que classificam e medem as pessoas, lembrando-os de seu status de átomos sociais individualizados.

A concepção de Estado de Poulantzas tornou-se progressivamente mais dinâmica: onde ele inicialmente enfatizava suas qualidades funcionais, tipo máquina, ele agora dramatizava suas fraturas e divisões internas, e as contingências introduzidas por sua vulnerabilidade às crises e suas estreitas ligações com a luta de classes. O Estado, na mais famosa formulação de Poulantzas, era “a condensação de um relacionamento de forças entre as classes… As contradições de classe são a própria substância do Estado: elas estão presentes em sua estrutura material e padronizam sua organização”. A insistência de Poulantzas na materialidade dos aparatos do Estado e sua reprodução do poder de classe foi um desafio direto à teorização foucaultiana do poder como um tecido abrangente da sociedade, uma espécie de jogo em que cada ato de resistência era um “movimento” estratégico. “O poder sempre tem uma base precisa”, contrapôs Poulantzas. O Estado “é um local e um centro do exercício do poder, mas não possui poder próprio”.


FONTE: Outras Palavras

[continua]

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