terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O socialismo do futuro

Por Giorgio Napolitano


1. Se nossa intenção é suscitar uma discussão criativa, livre de qualquer preconceito, é necessário reconsiderar o próprio conceito de "sociedade socialista", o objetivo mesmo de "construção" de uma sociedade socialista. Tal conceito e tal objetivo remetem a uma contraposição radical entre relações de produção capitalistas e relações de produção socialistas, entre leis econômicas do capitalismo e leis econômicas do socialismo; contraposição essa que tem sido duramente posta a prova pelas múltiplas experiências históricas, por disputas teóricas complexas, por novas tendências emergentes em escala mundial.

Deve-se observar que, se respeitamos a identificação entre socialismo e propriedade coletiva dos meios de produção, se reconhecemos a exigência de uma combinação entre diversas formas (privada, estatal, cooperativa) de propriedade dos meios de produção, se reconhecemos que o mercado tem um papel não marginal também em relação à utilização possível de instrumentos de planejamento, torna-se difícil definir e prefigurar uma "sociedade socialista" como sistema econômico e social que funciona com base em mecanismos totalmente antitéticos aos do sistema capitalista.

Já pertence ao passado a disputa sobre a via a seguir, que por décadas dividiu o movimento operário europeu. Faz tempo que a alternativa revolucionária tornou-se inapresentável. Mas hoje, também, parece altamente problemática a meta a ser alcançada através da luta pelo socialismo. O que está em questão não são as contradições do desenvolvimento capitalista, mas seu desenlace, ou seja, pergunta-se se ao aprofundamento daquelas contradições pode seguir-se a "construção" de uma ordem totalmente diversa.

Além disso, a construção de uma sociedade socialista tem sido tradicionalmente concebida como irreversível: como se o conceito de irreversibilidade pudesse ser conciliado com uma opção de respeito pleno pelo jogo democrático. É insuficiente afirmar que o advento de uma sociedade socialista não deve ser concebido em termos de uma derrubada violenta da ordem existente, mas como resultado de um processo histórico objetivo apoiado por uma ação política para a transformação gradual da sociedade. É necessário ter claro que conquistas de tipo socialista podem seguir-se como efeito da alternância entre forças de esquerda e forças conservadoras no governo de qualquer país -fases de "restauração", de cancelamento ou redimensionamento dessas conquistas, em um processo muito menos linear e objetivo do que se poderia imaginar a partir de certas versões do marxismo.

Levando tudo isso" em conta, parece mais sustentável uma definição de socialismo como conjunto de fins e de valores inseparáveis do desenvolvimento da democracia: fins e valores a serem reformulados e perseguidos no contexto de economia e sociedades capitalistas já profundamente transformadas e em vias de transformações ulteriores, e isso, de modo geral, no contexto de um mundo cada vez mais interdependente.

Nos países da Europa ocidental, o movimento operário e os partidos de esquerda, partindo da defesa dos interesses materiais da classe trabalhadora, esforçaram-se de fato, nas últimas décadas, em traduzir passo a passo os fins e valores do socialismo em objetivos de reforma, de gradual modificação das relações de classe e das tendências "espontâneas" do desenvolvimento capitalista. Hoje faz-se necessário identificar novos objetivos de reforma, novos objetivos de correção, de qualificação e de governo do desenvolvimento global da sociedade. A discussão, do ponto de vista do socialismo, sobre a validade de tais objetivos e dos resultados que possam ser alcançados através da luta política e social, permanecerá sempre aberta, não existindo nenhum texto sagrado ou autoridade de onde possa emanar um juízo inapelável. Mas pode-se pensar em padrões de medida amplamente compartilha dos para apreender o significado e o porte dos programas elaborados pelas esquerdas e dos resultados conseguidos, também, e especialmente, através da ação de governo.

A definição proposta não é, portanto, a mais "cômoda": elimina o álibi de uma referência qualquer ao futuro, e estimula a avaliação concreta dos elementos de mudança efetiva que as forças de inspiração socialista podem introduzir na sociedade. De fato, foi e é mais "cômodo" referir a própria identidade e o compromisso socialista à, mais do que nunca hipotética, "construção de uma sociedade socialista" num futuro distante, e eximir-se de qualquer esforço e qualquer verificação da coerência entre seus próprios objetivos e comportamentos atuais e os ideais do socialismo.

2. Em que medida e em que sentido se reduziram, comparando-se ao passado, os espaços para estratégias socialistas enquanto estratégias nacionais, e em que medida mudaram os conteúdos e os horizontes dessa estratégia?

Pode-se dizer que, até a reviravolta ocorrida na primeira metade dos anos 70 em conseqüência do choque do petróleo, as forças de esquerda implementaram, em alguns países da Europa ocidental, estratégias de caráter nacional obtendo visíveis sucessos. A melhoria substancial das condições econômicas, sociais e culturais dos trabalhadores bem como o progresso civil geral, conseguidos em alguns países - graças a ação sindical e política, às batalhas de oposição e aos períodos de governo de esquerda - podem ser considerados como um progresso relevante do movimento para o socialismo. Mas a partir da crise do petróleo aceleram-se enormemente os fenômenos de interdependência e os processos de inovações tecnológicas e de internacionalização da economia.

Também do ponto de vista da política externa, a dimensão nacional parece cada vez mais insuficiente, com respeito ao período precedente, no qual partidos socialistas e social-democratas no governo - refiro-me ao SPD ou ao partido social-democrata sueco - deram contribuições importantes no plano das relações internacionais a partir da máxima valorização do fator nacional.

O dado mais evidente é constituído pelo crescente condicionamento recíproco entre políticas econômicas e monetárias dos países membros da Comunidade Européia; pelo novo desenvolvimento do processo de integração européia sancionado pelo Ato Único de 1985; pela maior importância assumida pelas iniciativas comuns de política externa dos "doze". Parece ser possível afirmar que pelo menos os partidos mais representativos de esquerda já reconheceram, em linhas gerais, a necessidade de conferir uma dimensão européia às suas estratégias de reforma, de desenvolvimento econômico, de progresso social, e de enquadrar sua estratégia nacional numa perspectiva mais ampla de coordenação e de ação conjunta no nível da Comunidade.

Mas as conexões entre o desenvolvimento da Europa ocidental e o desenvolvimento nas outras partes do mundo tornam-se cada vez mais estreitas, e as questões e desafios de caráter "global" assumem um peso cada vez maior. As situações nacionais de alguns países da Europa ocidental conservam, sem dúvida, fortes especificidades e continuam a desenvolver-se de modo diferenciado; no interior de alguns desses países os interesses das classes trabalhadoras, os princípios da igualdade e da justiça, os valores da liberdade, da democracia e da tolerância - próprios da tradição socialista - são sustentados através de plataformas concretas que levam em conta aquelas realidades específicas, suas peculiaridades históricas e os aspectos novos que essas realidades apresentam. Por outro lado, é fato que, não apenas se amplia a esfera dos problemas e dos objetivos comuns a todos os países da Comunidade Européia e a todos os partidos de esquerda que nela operam, como os vínculos de competição e as exigências de cooperação em escala européia e mundial condicionam cada vez mais a possibilidade de ações e escolhas a nível nacional. Encontrar um ponto de equilíbrio satisfatório, isto é, coerente com uma estratégia socialista, não é fácil.

Consideremos um exemplo concreto, Competição significa também empenho em salvaguardar e melhorar a posição relativa do próprio país no âmbito da Comunidade Européia e do processo de realização do mercado único. Poderá esse empenho - que implica políticas de reestruturação, de modernização, etc. - ser priorizado por uma força de esquerda em relação a políticas de reequilíbrio social, de luta contra o desemprego, de sustentação ou melhoria dos níveis salariais, e dos padrões de proteção para os trabalhadores? O problema, que certamente não é novo, da relação entre promoção dos interesses de classe e a representação dos interesses nacionais na ação dos governos de esquerda, recoloca-se hoje num contexto bem mais complexo, por efeito da aceleração contínua dos processos de integração e competição internacionais.

Ainda mais difícil e agudo, porém, está se tornando, do ponto de vista do socialismo, o problema da relação entre a ação das forças de esquerda nos países capitalistas mais desenvolvidos, nas sociedades mais ricas do Ocidente, e o empenho no sentido de alcançar novos equilíbrios no desenvolvimento econômico mundial, e particularmente no sentido de estabelecer relações novas e mais justas entre Norte e Sul. Esse pode ser considerado o grande desafio "global" do nosso tempo, no sentido de que para todos, mesmo do ponto de vista dos interesses dos países mais industrializados, a persistência e agravamento dos desequilíbrios atuais nos países mais pobres e mais populosos podem vir a produzir conseqüências catastróficas, sufocar as perspectivas de desenvolvimento geral da economia mundial, e dar lugar a convulsões e conflitos incontroláveis. Mas certamente as forças socialistas do Ocidente deveriam considerar como um compromisso irrenunciável, e mesmo qualificador do socialismo, o compromisso com respeito a iniciativas orientadas para a definição e implementação de políticas de abertura plena, de colaboração múltipla e de transferência de recursos para o Sul do mundo. Também daqui surgem condicionamentos não desprezíveis para as estratégias nacionais dos partidos da esquerda européia, constituindo-se em razões suficientemente fortes para se repensar os conteúdos e possibilidades dessas estratégias. Aliás, as próprias necessidades atuais de políticas de sustentação dos processos de reforma e recuperação das economias do Leste implicam revisões das políticas de utilização de recursos dos países da Europa ocidental.

No limite, a inversão da tendência ao reaparecimento e aprofundamento dos desequilíbrios e injustiças nas relações econômicas internacionais, a questão do estado de pobreza e atraso de tantas regiões do Terceiro Mundo, se apresenta como questão de sobrevivência da civilidade humana. Assim também se apresenta, sem dúvida - como se reconhece crescentemente - a questão da interrupção e da inversão dos processos de degradação do meio ambiente, sendo claro que esses últimos estão ligados tanto ao uso desregrado de recursos nos países mais desenvolvidos como à condição desesperada de imensas áreas subdesenvolvidas.

Definitivamente, dentro de uma nova visão de socialismo devem recompor-se hoje, em termos muito diversos dos de um passado não tão longínquo, interesses de classe, interesses nacionais, e interesses de sobrevivência da espécie. Deve-se enfatizar a formulação e persecução de objetivos de justiça e de progresso em escala supranacional e mundial. Não pode haver justificativa mais elevada para as ações das forças socialistas do que a de afastar ameaças extremas à civilização humana - começando, naturalmente, pela ameaça da guerra mundial - e de garantir um desenvolvimento equilibrado e qualificado de forma bem diversa.

3. A crise dos sistemas construídos e governados por partidos comunistas difunde-se tumultuadamente, e as tentativas de reforma empreendidas com grande coragem na União Soviética e em outros países, não apenas se deparam com grandes dificuldades como estão dando lugar a graves e até convulsivas tensões. Deve-se repelir a tese segundo a qual a falência do assim chamado socialismo real equivale à falência da idealidade do socialismo. Mas não há dúvida de que elementos essenciais da ideologia e da prática dos maiores partidos comunistas - em relação à sua concepção de conquista e exercício do poder, do papel do Estado e da gestão da economia da sociedade socialista como sociedade monolítica, da função do partido único da classe operária - conduziram, ao se cristalizarem, a resultados desastrosos; por outro lado, já há bastante tempo era impossível falar de um movimento comunista diverso das doutrinas e experiências dos partidos comunistas no poder, especialmente depois da falência da tentativa extrema do eurocomunismo, e não obstante a importância de uma realidade diversa e original como a do PCI.

Não se vê como, ao "fim do comunismo histórico" possa seguir-se um maldefinido retorno ao comunismo original ou um não menos vago neocomunismo. Não sabemos qual será o desfecho dos processos de reformas e democratização iniciadas no Leste, ou o desfecho das mudanças repentinamente impostas na Alemanha Oriental e na Tchecoslováquia, originadas de in-coercível impulso das bases. Isto é, não sabemos como será o "comunismo reformado". Mas já pudemos observar na Polônia, na Hungria e na própria União Soviética, o quanto são importantes. Como pontos de referência, as experiências ocidentais do Estado de direito, da democracia representativa e da economia de mercado. A reforma e a evolução das sociedades do "socialismo real" têm sido colocadas por Gorbatchev, com grande audácia ideal, numa perspectiva que não é mais a da antiga contra- posição entre socialismo e capitalismo (ou imperialismo), mas na perspectiva de uma necessária cooperação e integração entre diversos sistemas no mundo de hoje e de amanhã: um mundo cada vez mais interdependente, "um mundo único". Longe estão as velhas idéias de "convergência", e não só porque apenas o "sistema socialista", em crise manifesta, parece convergir para um sistema capitalista recuperado, nos países mais desenvolvidos, dos choques dos anos 70, mas porque deve-se pensar em processos mais vastos e complexos de interpenetração entre as diversas experiências (também no campo do ocidente) e de experimentação de múltiplas vias de desenvolvimento econômico e social.

No seu desenvolvimento, esse discurso contempla, com lúcida consciência crítica - especialmente quando se parte da crise dos esquemas ideológicos e dos sistemas comunistas - a realidade dos próprios países capitalistas mais industrializados e mais democráticos, bem como a realidade do Terceiro Mundo. Nos anos 80 as políticas (e ideologias) de exaltação máxima do imperativo da eficiência, da inovação, da competitividade, foram coroadas de sucessos tangíveis, ainda que envolvendo pesados custos sociais e civis. Nesses mesmos anos os países mais pobres e mais endividados do Sul retrocederam assustadoramente, enquanto as economias estatizadas e centralizadas de tipo socialista perdiam toda sua força de atração devido à exaustão e à crescente e clamorosa incapacidade de garantir os níveis de segurança social e igualdade que haviam constituído o traço característico de sua imagem. De tudo isto derivam novas responsabilidades para as forças democráticas e socialistas que não pretendem identificar-se com a lógica neoconservadora prevalente no Oeste nem com os velhos esquemas do Leste e que não pretendem fechar os olhos à explosiva realidade do Sul.

Os sistemas democráticos da Europa Ocidental não podem ignorar a crise de valores, o quadro de desigualdade e de marginalização, os fenômenos de concentração do poder, as devastações e incógnitas de um crescimento desordenado, que fazem parte do saldo de desenvolvimento e bem-estar com que se celebra o fim do penúltimo decênio do século. Compete às forças de esquerda orientar aqueles sistemas para uma decidida revisão das concepções e políticas prevalentes nos anos 80. Somente assim a democracia européia poderá colocar-se à altura de suas melhores tradições e das expectativas que o "socialismo real" despertou no Leste: não separando direitos de liberdade e pluralismo econômico e político de novos desenvolvimentos no terreno da justiça social, da gestão do poder e da proteção do interesse geral.

Compete também às forças de inspiração socialista, empenhadas em toda a Europa-, no limiar dos anos 90, no difícil esforço de seu próprio relançamento, olhar para além das fronteiras do Velho Continente, e recolher as questões assim formuladas recentemente por Norberto Bobbio: "Estarão as democracias que governam os países mais ricos do mundo em condições de resolver os problemas que o comunismo não conseguiu resolver? Este é o problema, O comunismo histórico está falido, ... somente os tolos alegram-se com sua derrota e esfregando as mãos de contentamento dizem: 'Nós sempre dissemos!' Oh iludidos, acreditais que o fim do comunismo histórico tenha posto fim ã necessidade e à sede de justiça? Não será bom se dar conta que, se no nosso mundo reina e prospera a sociedade dos dois terços que nada têm a temer do terço de pobres diabos, no resto do mundo a sociedade dos dois terços, ou dos quatro quintos ou dos nove décimos é a sociedade dos pobres?

A democracia venceu o desafio do comunismo histórico, admitamo-lo. Mas com que meios e ideais se dispõe a enfrentar os mesmos problemas que originaram o desafio comunista?**

A resposta às indagações de Bobbio pode não provir unicamente das forças de esquerda da Europa ocidental. Mas essas serão certamente chamadas a desempenhar um papel não secundário na busca de novas vias pacíficas e democráticas para fazer avançar a justiça no mundo. É ao sucesso dessa busca que se confia o futuro do socialismo.


* Tradução de Regis de Castro Andrade

** O artigo de Bobbio mencionado por Napolitano foi publicado por Lua Nova nº 21,         [ Links ] com o título "A utopia" (N. T.)

Giorgio Napolitano.  Dirigente do Partido Comunista Italiano, Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Partido e membro do Parlamentos italiano


FONTE: Scielo

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