quarta-feira, 14 de julho de 2021

A questão do socialismo

 Por Wladimir Pomar


 

O so­ci­a­lismo volta, pau­la­ti­na­mente, a ser um tema pri­o­ri­tário de de­bate, à me­dida que os países ca­pi­ta­listas en­frentam pro­blemas pro­fundos no en­fren­ta­mento da pan­demia, e em que al­guns deles tendem a fazer in­ter­ven­ções es­ta­tais para re­cu­perar a eco­nomia e os em­pregos. Não será sur­presa se Biden for acu­sado de “so­ci­a­lista” por pre­tender taxar as grandes for­tunas e in­vestir em pro­gramas so­ciais que mi­norem as con­di­ções de po­breza dos tra­ba­lha­dores ex­cluídos do mer­cado de tra­balho em vir­tude da cres­cente pro­du­ti­vi­dade in­dus­trial norte-ame­ri­cana.

De qual­quer modo, para início de con­versa sobre o so­ci­a­lismo, não se pode con­si­derá-lo uma in­venção teó­rica, um sonho, ou uma utopia hu­ma­ni­tária. Ela está in­ti­ma­mente as­so­ciada à prá­tica exis­ten­cial do ca­pi­ta­lismo. À me­dida que essa for­mação his­tó­rica eleva a pro­du­ti­vi­dade de suas forças pro­du­tivas, po­dendo atender a todas as ne­ces­si­dades so­ciais, ela gera, ao mesmo tempo, uma con­tra­dição chave: um forte de­sem­prego tec­no­ló­gico, com uma queda brutal na efe­ti­vação da cir­cu­lação das mer­ca­do­rias que produz.

Com uma es­tu­penda ca­pa­ci­dade pro­du­tiva, o ca­pi­ta­lismo torna-se in­capaz de atender às ne­ces­si­dades so­ciais bá­sicas, em vir­tude da ma­nu­tenção da pro­pri­e­dade pri­vada e da busca do lucro. O au­mento da pro­du­ti­vi­dade cria uma massa hu­mana sem con­di­ções de vender sua força de tra­balho e, em con­sequência, sem con­di­ções de con­sumir as mer­ca­do­rias pro­du­zidas pelo ca­pital. Em tais con­di­ções, Marx e En­gels con­cluíram que a su­pe­ração de tal con­tra­dição só pode ocorrer numa nova for­mação econô­mica, so­cial e po­lí­tica que, ex­tin­guindo a pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução, agi­lize um cres­cente igua­li­ta­rismo na ad­mi­nis­tração das forças pro­du­tivas e na dis­tri­buição dos bens ne­ces­sá­rios à vida hu­mana.

O so­ci­a­lismo, desse modo, con­siste em re­a­lizar o pro­cesso in­ter­me­diário para a su­pe­ração hu­ma­ni­tária da­quela con­tra­dição do ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido. Por outro lado, um dos pro­blemas desse pro­cesso, des­co­berto pelos dois pen­sa­dores ale­mães, con­siste em que o de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista dos países tem sido his­to­ri­ca­mente muito de­si­gual. Di­ante das na­ções muito de­sen­vol­vidas, a exemplo dos Es­tados Unidos, Ca­nadá, Ale­manha, França e Japão, en­con­tram-se inú­meras na­ções e povos atra­sados em tal de­sen­vol­vi­mento, a exemplo do Brasil, Chile, Gana, Tai­lândia etc. etc.

Te­o­ri­ca­mente, os povos eco­no­mi­ca­mente mais de­sen­vol­vidos de­ve­riam chegar ao ponto má­ximo da­quela con­tra­dição antes dos mais atra­sados. No en­tanto, do ponto de vista prá­tico, para em­ba­ra­lhar tal pro­cesso, a his­tória real apre­sentou si­tu­a­ções de crises pro­fundas, com ten­ta­tivas de tran­sição so­ci­a­lista, em países de pe­queno de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista. Neles, as con­tra­di­ções bá­sicas ainda es­tavam atadas à pre­do­mi­nância de re­la­ções feu­dais, como foram os casos em­ble­má­ticos da Rússia e da China, ou da su­bor­di­nação co­lo­nial, nos casos da China, Vi­etnã e Co­réia, ou ainda a de­sen­vol­vi­mentos ca­pi­ta­listas mais lentos, como no leste eu­ropeu.

Na Rússia e na China, o feu­da­lismo ainda es­tava for­te­mente pre­sente na agri­cul­tura e na or­ga­ni­zação po­lí­tica, e a in­dús­tria ca­pi­ta­lista era se­cun­dária. No caso chinês, havia o agra­vante de que áreas im­por­tantes do país se en­con­travam sob ju­ris­dição de po­tên­cias co­lo­ni­za­doras, além de sua in­dús­tria ser fraca e sob forte do­mínio es­tran­geiro. Nessas con­di­ções, as con­tra­di­ções bá­sicas das so­ci­e­dades russa e chi­nesa ainda não eram as con­tra­di­ções ca­pi­ta­listas, mas as con­tra­di­ções feu­dais e co­lo­niais, em­bora os tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados, mesmo mi­no­ri­tá­rios, fossem uma das prin­ci­pais bases so­ciais e po­lí­ticas para a luta pela su­pe­ração do feu­da­lismo e do do­mínio co­lo­nial.

Por outro lado, ambos os países foram as­so­lados pelas guerras im­pe­ri­a­listas fo­men­tadas pelo ca­pi­ta­lismo de­sen­vol­vido, seja pela re­par­tição dos países co­lo­niais, ou pela trans­for­mação de países in­de­pen­dentes em colô­nias. Tanto na Rússia quanto na China foram as guerras desse tipo que cri­aram as con­di­ções para a eclosão de re­vo­lu­ções so­ci­a­listas e de­mo­crá­tico-po­pu­lares.

Di­zendo de outro modo, as forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias desses países atro­pe­laram a his­tória, em­bora em mo­mentos muito di­fe­rentes (Rússia, em 1917; China, em 1949), ime­di­a­ta­mente após guerras im­pe­ri­a­listas mun­diais. Ou seja, a questão do so­ci­a­lismo eclodiu antes que as con­di­ções ma­te­riais para tal tran­sição hou­vessem ama­du­re­cido. Em ambos os países, o modo de pro­dução ca­pi­ta­lista ainda não havia de­sen­vol­vido sua con­tra­dição de trans­for­mação.

Lênin teve a pers­pi­cácia de re­co­nhecer isso ime­di­a­ta­mente após a re­vo­lução russa de 1917, pro­pondo a cri­ação da NEP (Nova Po­lí­tica Econô­mica), que com­bi­nava o de­sen­vol­vi­mento do mer­cado com a ori­en­tação es­tatal. Ex­pe­ri­ência que findou em 1928, em grande parte em vir­tude da pre­pa­ração de uma nova guerra mun­dial, tendo o im­pe­ri­a­lismo alemão como carro chefe. Em­bora pa­re­cesse vol­tada para des­truir a ex­pe­ri­ência so­vié­tica, na ver­dade a nova guerra de ex­pansão do na­zismo pre­tendia, acima disso, uma nova di­visão co­lo­nial do mundo.

De qual­quer modo, no caso so­vié­tico, o Es­tado se viu com­pe­lido a as­sumir ple­na­mente a pre­pa­ração in­dus­trial para tal en­fren­ta­mento, le­vando-o a es­ta­tizar todo o pro­cesso econô­mico. Es­ta­ti­zação que, com o su­cesso bé­lico contra o na­zismo, con­ti­nuou no pós-guerra, na su­po­sição de que o pla­ne­ja­mento econô­mico cen­tra­li­zado seria capaz de re­solver todos os pro­blemas da tran­sição so­ci­a­lista.

A ex­pe­ri­ência his­tó­rica mos­trou que tal su­po­sição era er­rônea. A União So­vié­tica e os países de­mo­crá­tico-po­pu­lares do leste eu­ropeu nau­fra­garam, como países de tran­sição so­ci­a­lista, muito mais por sua in­ca­pa­ci­dade de atender às de­mandas co­muns da vida de seus ha­bi­tantes do que por ou­tros mo­tivos.

No caso chinês, houve ini­ci­al­mente a pers­pi­cácia de su­gerir um ca­minho “de­mo­crá­tico po­pular”, pré-so­ci­a­lista, le­vando em conta que parte da bur­guesia na­ci­onal chi­nesa apoiava tanto a guerra de li­ber­tação contra o im­pe­ri­a­lismo ja­ponês quanto a guerra civil re­vo­lu­ci­o­nária contra o do­mínio feudal na agri­cul­tura. Porém, em­bora a re­forma agrária tenha sido a prin­cipal marca da pri­meira fase da Re­pú­blica Po­pular da China, logo de­pois a bur­guesia na­ci­onal chi­nesa tentou impor seu pró­prio ca­minho, le­vando a uma dis­puta acir­rada em torno da in­dus­tri­a­li­zação, do con­trole dos preços e de di­versos ou­tros itens do pro­cesso econô­mico e so­cial.

Nessa dis­puta, os so­ci­a­listas chi­neses foram le­vados a adotar vá­rias das ex­pe­ri­ên­cias so­vié­ticas, tanto na agri­cul­tura – fa­zendas co­le­tivas, co­munas po­pu­lares – quanto na in­dús­tria. Para elevar a pro­dução de bens in­dus­triais e re­duzir o de­sem­prego, in­ten­si­fi­caram a es­ta­ti­zação in­dus­trial e cri­aram o sis­tema 3:1 (um tra­balho / 3 em­pregos), e se em­pe­nharam em re­a­lizar grandes mo­vi­mentos so­ciais. Mas es­bar­raram sempre em seu pró­prio atraso tec­no­ló­gico e ci­en­tí­fico, fa­zendo com que tais ex­pe­ri­ên­cias se es­go­tassem com o fra­casso da Re­vo­lução Cul­tural, por volta de 1976.

Nos dois anos de ava­li­ação dessas ex­pe­ri­ên­cias, ten­tadas entre os anos 1949-1976 (27 anos), os chi­neses che­garam à mesma con­clusão de Lênin. Ou seja, num país in­dus­tri­al­mente atra­sado não era pos­sível abolir o mer­cado por de­creto. Seria ne­ces­sário com­binar a ação pri­mária do mer­cado com a ori­en­tação ci­en­tí­fica, econô­mica, so­cial e po­lí­tica do Es­tado, de modo a de­sen­volver as ci­ên­cias, as tec­no­lo­gias e as in­dús­trias como carros chefes do pro­cesso geral de de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial.

Ou seja, a ori­en­tação do Es­tado de­veria não só fazer com que a in­dús­tria e a agri­cul­tura fossem mar­cadas pelo de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico, ele­vando cons­tan­te­mente sua pro­du­ti­vi­dade, mas também ti­vessem como alvo o aten­di­mento das ne­ces­si­dades so­ciais e a cons­tante ele­vação do pa­drão de vida e do nível edu­ca­ci­onal da po­pu­lação tra­ba­lha­dora. Por outro lado, tal ori­en­tação es­tatal não de­veria ser apenas ge­né­rica. De­veria ser mol­dada por planos (anuais, quin­que­nais e de mais longo prazo), e pela par­ti­ci­pação prá­tica e con­cor­ren­cial das em­presas es­ta­tais.

As es­ta­tais, por sua vez, não de­ve­riam ser mo­no­po­listas. Cada setor econô­mico de­veria ter três ou mais em­presas es­ta­tais, con­cor­rendo entre si e com as em­presas pri­vadas, de modo a evitar a bu­ro­cra­ti­zação, elevar o pa­drão tec­no­ló­gico e re­baixar os preços. O mesmo de­veria ocorrer com as em­presas pri­vadas, evi­tando os mo­no­pó­lios e a es­tag­nação tec­no­ló­gica.

Por outro lado, para dar o salto in­dus­trial e tec­no­ló­gico ne­ces­sário, foi pos­sível apro­veitar-se da ten­dência de mun­di­a­li­zação das grandes em­presas ca­pi­ta­listas mul­ti­na­ci­o­nais, ace­le­rada a partir dos anos 1970. Seus in­ves­ti­mentos foram ad­mi­tidos em zonas econô­micas es­pe­ciais, desde que es­ta­be­le­cessem joint ven­tures com em­presas chi­nesas, e trans­fe­rissem a elas novas e/ou altas tec­no­lo­gias.

Além disso, muitos tra­ba­lha­dores e téc­nicos do sis­tema in­dus­trial 3:1 foram in­cen­ti­vados a ela­borar pro­jetos de in­ves­ti­mento a serem fi­nan­ci­ados pelos bancos es­ta­tais, de modo a di­ver­si­ficar a pro­dução in­dus­trial e su­prir as cres­centes ne­ces­si­dades so­ciais. Ou seja, ao mesmo tempo em que ad­mitia a pre­sença do ca­pital es­tran­geiro em áreas de­li­mi­tadas de seu ter­ri­tório, o Es­tado chinês fi­nan­ciou o res­sur­gi­mento de uma bur­guesia na­ci­onal capaz de con­correr não só com esse ca­pital ex­terno, mas também com o ca­pital es­tatal, em­bora su­bor­di­nada aos pro­gramas ou planos de de­sen­vol­vi­mento ori­en­tados pelo Es­tado e pelas ci­ên­cias e tec­no­lo­gias.

O que ex­plica, por um lado, e em grande me­dida, o cres­cente papel do en­sino ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico na am­pli­ação do sis­tema edu­ca­ci­onal chinês e, por outro, a pre­sença cres­cente do co­nhe­ci­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico nos planos es­ta­tais de ori­en­tação das em­presas es­ta­tais e do mer­cado.

É desse modo que o so­ci­a­lismo chinês está se apro­xi­mando do nível ci­en­tí­fico, tec­no­ló­gico e econô­mico das grandes po­tên­cias, e dando con­di­ções de seu povo ter um cres­cente pa­drão de vida. Numa es­cala menor, mas com ca­rac­te­rís­ticas pró­prias, é também o que o so­ci­a­lismo vi­et­na­mita está fa­zendo.

FONTE: Correio da Cidadania: 

Sem comentários:

Enviar um comentário