quarta-feira, 26 de março de 2014

O magnífico levante da Bósnia anuncia uma nova era de política de classes?



No país marcado por uma guerra sempre lembrada pelo termo “limpeza étnica”, a recente revolta popular unifica a classe trabalhadora das três etnias da sociedade – expurgando o veneno do nacionalismo em nome dos direitos dos trabalhadores



Por Michael Karadjis, em Links | Tradução: Vinicius Gomes



Começando o dia 5 de fevereiro, manifestantes em massa, liderados por trabalhadores e ex-trabalhadores dispensados para “diminuir os gastos” em fábricas privatizadas, ao lado de estudantes e outros cidadãos, abalaram as estruturas das principais cidades industriais na Bósnia, notavelmente Sarajevo, Tuzla, Zencia, Bihac e Mostar. O Estado respondeu às primeiras manifestações com prisões, gás lacrimogêneo e outras formas de repressão. Em muitos casos, protestos pacíficos se tornaram violentos; prédios do governo foram atacados, ocupados e alguns deles, incendiados. Dezenas de milhares de manifestantes não pediam nada além da renúncia e demissão – de todos os níveis governamentais, de todos os partidos – daqueles que eles enxergam como responsáveis pelas décadas de roubo massivo pelas três alas nacionalistas e oligárquicas – sérvia, croata e bosniak (bósnios muçulmanos) –, que têm gerenciado a Bósnia como se fosse seu feudo desde o Acordo de Dayton, desenhado pelos EUA, o qual pôs um fim à Guerra da Bósnia em 1995.

A principal, se não única, forma de roubo que iniciou o levante se chama “privatização”.

Protesto em Tuzla, cidade que serviu como ignição para outras
manifestações pela Bósnia (Juniki San/WikiCommons)
Demissões em massa, novos proprietários despojando bens e declarando falência em bens funcionais de firmas estatais; trabalhadores não sendo pagos e pacotes de diminuição de custos. Soa familiar? Alguns preferem chamar isso de privatização “ilegal” ou “corrupta”, mas, para milhões de trabalhadores ao redor do planeta, isso é melhor definido como “capitalismo”.

De acordo com o especialista em Bósnia Eric Gordy, a atual revolta na Bósnia “provavelmente não é a revolução dos trabalhadores a qual temos esperado desde que aqueles belos manuscritos passaram a ser criticados por roedores em 1844. Perdão”.

Talvez não. Mas qual revolução trabalhista que começa pode ser instantaneamente reconhecida?

O que quer que esse atual levante seja, ou não seja, ele é a maior demonstração em massa de uma revolta – intocada pelo veneno nacionalista – que testemunhamos na Bósnia desde que foi dilacerada em pedaços pelos nacionalistas sérvios e croatas no início da década de 1990.

E isso é ainda mais significativo devido à diversidade étnica da classe trabalhadora bósnia. Foi nos grandes pólos industriais de maioria bosniak, no centro do país – os quais eram a representação viva das melhores tradições de uma sociedade multiétnica na antiga Iugoslávia socialista -, que a atual onda de revoltas explodiu.

“Devolvam as fábricas aos trabalhadores!”

Locais onde os protestos aconteceram. As maiores cidades onde
eles ocorreram estão marcadas com o nome (Wikipedia)
Suas demandas indicam que alguns dos mais poderosos aspectos da ideologia da antiga Iugoslávia – autogerenciamento das fábricas pelos trabalhadores e uma radical igualdade social – renasceram, ou talvez nunca tenham morrido no fundo da consciência das pessoas.

Apenas preste atenção em algumas das principais demandas incluídas na “Declaração dos Trabalhadores e Cidadãos de Tuzla”, em 7 de fevereiro.

Enquanto o pedido por “um governo técnico, composto por membros especialistas apolíticos e que não tenham tido tomado parte em nenhum cargo governamental”, possa soar ingênuo, os manifestantes enxergam isso como um mero governo temporário para levá-los até as eleições e, além disso, seria “exigido deles que prestassem contas e relatórios semanais sobre seus trabalhos” a “todos os cidadãos que se interessem”.

Essa exigência, de constante supervisão pública sob o governo – forjada na experiência de décadas de controle isolado e arrogante das três alas “étnicas” da oligarquia bósnia e sugerindo uma forma de “poder do povo” –, já parece bem à frente dos outros governos “técnicos” e, certamente, rumando a uma direção diferente.

Todavia, é o programa social que o povo exige de tal governo que o torna tão diferente de outros tipos de governo, tal qual o dia é contrário à noite. A terceira parte de exigências, relacionadas às questões da privatização das principais empresas estatais que dominava a economia da cidade (Dita, Polihem, Poliolhem, Gumara e Konjuh), é para que o governo:

- Reconheça o tempo de serviço e o garanta seguro-saúde aos trabalhadores

- Garanta julgamentos de crimes econômicos a todos aqueles envolvidos

- Confisque propriedades obtidas ilegalmente

- Anule os contratos de privatização

- Prepare a revisão das privatizações

- Devolva as fábricas aos trabalhadores e coloque tudo sob o controle do governo público com o objetivo de proteger o interesse público e iniciar a produção nessas fábricas assim que possível

"Nós estamos famintos em três idiomas" - sérvio, croata, bósnio
(balkanist.net)
Após décadas de agressões neoliberais, tanto em prática quanto em nível ideológico, um povo em revolta exigir que fábricas privatizadas sejam “devolvidas aos trabalhadores” indica um momento extraordinariamente renovador.

Então pode ser que tal levante não seja ainda a “revolução dos trabalhadores prometida em 1844”, mas é difícil discordar do ativista bósnio Emin Eminagić quando diz que “essa pode ser a tão esperada oportunidade para reintroduzir a noção de luta de classes na sociedade da Bósnia Herzegovina, afastando-se do imaginário nacionalista das elites políticas”. Assim como também exemplifica um cartaz na manifestação em Zenica: “Nós estamos famintos em três idiomas!”.

Contexto histórico: a ascensão da burguesia nacionalista e a destruição da Bósnia


Josip Broz Tito, ou apenas "Marechal Tito", foi
o grande responsável pela manutenção, durante
décadas, da unidade de uma Iugoslávia
multiétnica (WikiCommons)
É extremamente significativo que não haja um só traço do veneno nacionalista em qualquer uma das demandas no levante popular. O nacionalismo foi um produto do capitalismo em crescimento dentro da República Federal Socialista da Iugoslávia, na década de 1980 – a ideologia da ascensão da burguesia nas nações dominantes, especialmente Sérvia, Croácia e Eslovênia –, assim que eles se libertaram das correntes da ideologia comunista, sob a liderança de Broz Tito, da “Irmandade e Unidade” e, também, da solidariedade da classe trabalhadora entre as várias nações que compunham a federação.

A Bósnia foi o mais problemático caso para se resolver, porque, enquanto as outras cinco repúblicas dentro da Federação Iugoslava representavam, por mais imperfeitas que fossem, cinco nações iugoslavas diferentes, ela era a única república multiétnica, composta por sérvios, croatas, muçulmanos (bosniaks), “iugoslavos” (aqueles que nasceram de “mistura” étnica ou que não se encaixavam em nenhuma identificação), entre outros – era como se a Bósnia fosse uma outra Iugoslávia em menor escala. Além disso, se as classes trabalhadoras nas cidades da região central da Bósnia eram o coração do país – onde trabalhadores de todos esses grupos étnicos trabalhavam nas mesmas fábricas e viviam nos mesmos prédios habitacionais –, como a nova burguesia nacionalista iria dividi-las?

E, mesmo assim, divididos eles tinham de ser – tanto no interesse das burguesias vizinhas na Sérvia e Croácia quanto pelas potências imperialistas do Ocidente -, pois, afinal de contas, uma classe trabalhadora unida, que, além de tudo, ultrapassa fronteiras étnicas, não ajudaria muito em uma “reforma” econômica (leia-se privatização/roubo do que antes era legalmente controlado por eles).

Especialmente quando esses trabalhadores bósnios possuem tanta história na militância do conflito de classes. De fato, foram os mineiros nessa mesma cidade de Tuzla, ao norte da Bósnia, que organizaram um apoio aos heroicos mineiros britânicos que entraram em greve na década de 1980. E isso não era uma tradição que a classe britânica dominante gostaria de manter, talvez pelo fato de o partido conservador que governava a Grã-Bretanha ser um dos maiores apoiadores das demandas do líder burguês nacionalista, o sérvio Slobodan Milosevic, de dividir a Bósnia e criar pequenos Estados etnicamente “limpos”.

O problema em dividir a Bósnia, levando em conta os grupos étnicos, é que as pessoas não viviam em áreas separadas, mas todas juntas nas cidades e completamente misturadas nas regiões rurais. Então, para criar uma “República Sérvia” dentro da Bósnia, como desejava Milosevic, assim como uma “República Croata”, como era a vontade de seu parceiro no crime, Franjo Tudjman, seria “necessário” uma “limpeza étnica” massiva – o que não passa de um eufemismo para genocídio. E as principais vítimas disso eram aquelas que, de uma só vez, eram as mais espalhadas geograficamente pela Bósnia, a mais urbana e proletarizada e que não possuíam uma “pátria” fora da Bósnia para armá-la até os dentes – notoriamente bósnios muçulmanos e “miscigenados”.

E, enquanto os novos Estados burgueses e independentes da Servia e Croácia começaram em abril de 1992 a esculpir seus novos países através da limpeza étnica, o Reino Unido e a França aplicaram um embargo de armas à república bósnia, em violação ao Artigo 51 da ONU, que diz que todo Estado-membro tem o direito de se armar em autodefesa. Além de exigirem a rendição da Bósnia, eles também eram a favor da divisão interna do país em grupos étnicos.

O governo multiétnico da Bósnia – liderado pelos bosniaks e antinacionalistas sérvios e croatas – rejeitou essas exigências de apartheid étnico e reconhecimento de limpeza étnica.

Ao mesmo tempo em que tentava se defender, praticamente sem armas.

Novamente, Tuzla, a cidade que iniciou o levante de 2014, teve participação chave junto da capital  Sarajevo, ao manter uma poderosa resistência multiétnica – uma tarefa nada fácil enquanto quase um milhão de bosniaks eram enviados a pequenas partes ainda controladas pelo governo bósnio – no qual quase 85% do território do país já tinha sido “conquistado e limpado” pelas repúblicas sérvia e croata. 

A república do apartheid de “Dayton”

Escavação de uma vala coletiva no leste da Bósnia. Os homens
da cidade de Foca foram executados, enquanto suas mulheres
eram repetidamente violentadas pela facção sérvia do conflito
(Polargeo/WikiCommons) 
No fim, foi a intervenção norte-americana, no final de 1995 – após três anos e meio de massacre – que garantiu ao partido de extrema direita sérvio (SDS, sigla em inglês), usando metade do território bósnio, uma “República Sérvia” limpa etnicamente, apesar de os sérvios serem apenas um terço dos bósnios. O “timing” do Acordo de Dayton quase sugere uma “recompensa” ao SDS por ter cometido genocídio na cidade bosniak de Srebenica – apenas quatro meses antes.

Todavia, a preocupação em garantir também que uma “República Croata” pudesse criar um “Estado muçulmano” com sede de vingança no coração da Europa fez com que os EUA obrigassem os nacionalistas croatas a aceitarem uma “Federação” com os muçulmanos na outra metade.

É importante ressaltar que essa “Federação” não era uma concessão à “multietnicidade”; não apenas o estrago já havia sido feito e rios de sangue já tivessem dividido duas populações (e ambas por conta dos sérvios), mas também a nova constituição da Bósnia foi inteiramente reescrita para criar cotas étnicas em todos os níveis do governo, em ambos os lados do país – indo do nível municipal ao federal.

Então, junto com a paz veio uma divisão nacional que se tornou dominante; assim como todo e qualquer espectro político que surgisse era direcionado para um problema nacionalista; toda eleição, em todos os níveis, se tornava um fórum para a burguesia étnica tentar agarrar mais espólios, enquanto promovia o nacionalismo em nome dos assustados e empobrecidos constituintes. E, no final, formavam governos com grotescas coalizões baseadas em partidos etnicamente direcionados – muitas vezes, mutuamente hostis -, ou seja, uma receita para permanente disfunção governamental.

Assim sendo, enquanto as burguesias da Bósnia despedaçavam a economia e roubavam os bens das pessoas – como requerido pela “reforma econômica” neoliberal –, sempre haveria alguma outra pessoa em quem jogar a culpa; algum outro grupo nacional pronto para roubar os (desiguais) “direitos” que haviam conquistado em Dayton e, com isso, evitavam que a classe trabalhadora enxergasse os reais culpados – que era sua própria burguesia étnica.

Por isso a importância de as demandas atuais não terem caráter nacionalista. Na realidade, essa não é a primeira ação que cruzou os limites étnicos – em junho passado, a “Babylution” foi a precursora de um breve protesto em massa multiétnico, contra o inacreditável sistema disfuncional nos quais os partidos e as agências do Estado eram incapazes de alcançar um entendimento para conseguir emitir documentos de identidade para bebês, no que resultou na morte de uma criança que não pôde cruzar a fronteira para um tratamento médico urgente. Mas aquele breve momento foi sobreposto pela atual revolta em massa.

O colapso da economia da Bósnia

A situação econômica catastrófica da Bósnia, com uma taxa de 40% de desemprego – sendo 57% entre jovens –, não veio do nada, e o saque das três elites étnicas carrega a maior parte da culpa.

Mesmo assim, enquanto as oligarquias étnicas devem ser consideradas culpadas, suas ações eram previstas por conta da ordem política imposta por Dayton e o programa econômico imposto pelo FMI, o Banco Mundial e a União Europeia.

O último programa de austeridade imposto pelo FMI, há cinco anos, congelou o orçamento, cortou salários e benefícios, além de acelerar a privatização – massivamente aumentando o consumo e dobrando a dívida pública. A Bósnia já estava em profunda crise econômica e, como de praxe, a “cura” do FMI só tornou as coisas piores, ao forçar a já combalida classe trabalhadora a pagar pelo roubo da elite capitalista. 

Para onde vai?

O filósofo esloveno Slavoj Zizek escreveu: “O que o levante bósnio confirma é que ninguém pode genuinamente se sobrepor às paixões étnicas impondo uma agenda liberal: o que uniu os manifestantes é uma exigência radical por justiça”.

É certamente possível afirmar que o estrangulamento “étnico” em cima da militância dos trabalhadores bósnios foi quebrado e isso é suficientemente significativo. Além disso, os seus slogans apontam para uma importante ruptura com a lógica do capitalismo.

Pichação em Tuzla: "Parem o nacionalismo. Parem a divisão nacionalista
da Bósnia. Bósnia unida" (ivavukic.com)
Que esse desafio tenha surgido na Bósnia é inteiramente lógico. A Iugoslávia socialista sob Broz Tito tinha muitos dos defeitos de outros regimes da Europa Oriental, incluindo ser comandada por uma massiva casta de burocratas privilegiados que reprimiam uma oposição genuína; e onde ela se diferenciava era em sua versão de “socialismo de mercado”, cuja orientação não conseguia escapar da lógica de competição selvagem, anarquia econômica e desemprego, que são características do “capitalismo de mercado”.

Por outro lado, entretanto, a Iugoslávia sempre teve uma atmosfera mais liberal politicamente que qualquer outro país do Leste e, acima de tudo, sua doutrina única de “autogerenciamento dos trabalhadores” das fábricas e propriedade “social” – a liberação dos meios de produção do controle burocrático – é uma poderoso legado que ainda vive no consciente da classe trabalhadora. Uma possibilidade de um mundo diferente, independente do fato de que essas empresas autogerenciadas por trabalhadores na época foram minadas precisamente por terem sido jogadas no mundo do “mercado”.

Ou seja, não é apenas a demanda para as fábricas aos trabalhadores, mas em particular a palavra “retorno” – elas eram nossas, afinal de contas.

Mesmo assim, até que os trabalhadores de Tuzla fossem retomar o controle das fábricas fisicamente, esse exemplo precisaria ser espalhado por outros lugares da Bósnia e, de fato, em outros lugares dos Bálcãs, pois existe uma chance de formar uma nova ordem socialista.

Na Grécia, por exemplo, a trégua dentro do movimento contra UE-FMI e a catástrofe socioeconômica, imposta por eles, que foi vivida por todo o ano de 2013, foi quebrada quando os trabalhadores da Greek Radio-Television (ERT, sigla em inglês) tomaram sua própria empresa quando o regime tentou fechá-la. Se tornou um grito de guerra, uma fonte de esperança, um exemplo de um caminho diferente. Mas, após vários meses, ele não podia mais sobreviver por conta própria.

De qualquer maneira, o movimento pelo socialismo necessita de tais fagulhas para demonstrar que “outro mundo é possível”. Para citar Zizek novamente: “Mesmo se os protestos percam gradualmente seu poder, eles irão permanecer como uma breve fagulha de esperança, algo como os soldados inimigos confraternizando na terra de ninguém, entre as trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Eventos emancipatórios autênticos sempre envolvem ignorar identidades particulares”.

Isso é muito bem dito, com a adição necessária de que a “fagulha de esperança da qual se fala aqui não é apenas ignorar identidades “étnicas”, mas também um caminho em direção a uma nova ordem socioeconômica emancipatória.


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