domingo, 14 de agosto de 2016

O pensamento vivo de Che Guevara - parte 2


Seus primeiros escritos buscaram sistematizar as experiências guerrilheiras em Cuba e generalizá-las para os outros países do Terceiro Mundo. No entanto, também, escreveu sobre economia, Estado, ideologia socialista e a construção do "novo homem”. Creio que estes últimos textos sejam os mais significativos e os que mais podem nos trazer ensinamentos para os dias atuais.



Por Augusto C. Buonicore*

Visando a vencer estes obstáculos Che lançou um amplo movimento de emulação do trabalho. Ele criou e liderou os batalhões de voluntários, participando pessoalmente do corte de cana e da construção de moradias. Seguindo seu exemplo, milhares de estudantes, funcionários públicos e intelectuais passaram a realizar atividades produtivas fora do seu tempo normal de trabalho ou de estudo. Guevara queria utilizar a força do exemplo para incentivar os trabalhadores a aumentarem a produção.

Aqui, novamente se estabeleceu uma divergência entre ele e os especialistas soviéticos. Tratava-se de encontrar a melhor forma de incentivar o trabalhador a produzir mais e melhor. Toda a tradição de construção do socialismo na URSS e no Leste Europeu se baseava, fundamentalmente, na concessão de estímulos materiais aos trabalhadores que atingissem ou ultrapassassem as metas impostas pelos órgãos centrais de planejamento. Guevara não negava a necessidade de se dar esses estímulos materiais na primeira fase de construção do socialismo, mas acreditava que o movimento de emulação para produção não devia se assentar principalmente neles.

Escreveu: "não negamos a necessidade objetiva do estímulo material, mas estamos relutantes em utilizá-lo como alavanca impulsora fundamental. Consideramos que, em economia, este tipo de alavanca se torna rapidamente uma categoria autônoma e chega a impor rapidamente sua própria força nas relações entre os homens. Não devemos esquecer que (essa necessidade de estímulos materiais) provém do capitalismo e está destinada a morrer no socialismo”.

Criticando os defensores do modelo de emulação de tipo soviético, afirmou: para eles, "o estímulo material direto, projetado no futuro e acompanhando a sociedade nas diversas etapas da construção do comunismo, não se contrapõe ao ‘desenvolvimento’ da consciência, enquanto para nós, sim; é por isso que lutamos contra o seu predomínio: porque significa o atraso do desenvolvimento da moral socialista”.

Era preciso ganhar a consciência dos trabalhadores, fortalecendo neles uma ética socialista. O partido revolucionário e seus militantes teriam um grande papel neste processo de reeducação da sociedade. "O grande papel do Partido nas unidades de produção é ser o seu motor interno e utilizar todas as formas de exemplo de seus militantes para que o trabalho produtivo, a capacitação, a participação nos assuntos econômicos das unidades sejam parte integrante da vida dos operários e se transformem num hábito insubstituível.”

Outro aspecto, vinculado ao anterior, que diferenciava o projeto de Guevara das experiências do "socialismo real”, era quanto à igualização dos salários. No regime soviético, as significativas diferenças salariais entre trabalho intelectual e manual, entre trabalho especializado e não especializado, entre função dirigente e subordinada passaram a ser defendidas como intrínsecas a todo o período de transição do socialismo ao comunismo. Na tradição soviética o "igualitarismo” foi apressadamente definido como um desvio pequeno-burguês.

Guevara acreditava que, já no início da transição, o Estado Socialista e o Partido Comunista deveriam tomar medidas no sentido de eliminar as mazelas provindas da sociedade capitalista, a saber: a divisão estanque entre trabalho intelectual e manual; entre funções de mando e subordinadas; o predomínio de incentivos materiais, através de maiores salários e acesso aos bens de consumo – o que, no caso soviético, contribuiu para a formação de uma burocracia afastada das massas trabalhadoras. Ele defendeu que o socialismo, necessariamente, deveria tender sim para a igualização dos salários e das condições de vida. Isto, inclusive, deveria implicar sacrifícios conscientes para algumas camadas de trabalhadores mais privilegiadas, especialmente dos setores médios e da burocracia.

Afirmou ele: "Esta tarefa de distribuição dos bens do país é a mais difícil e a mais penosa; estamos empenhados nela agora para repartir de modo equitativo nossa pobreza, para que ninguém deixe de comer, de se vestir, de receber educação, atendimento médico e também para que ninguém receba demais (...) não deve recair sobre os trabalhadores a desgraça de pertencer a uma indústria de pouca rentabilidade ou a sorte excessiva de estar numa indústria das mais rentáveis”. Continuou, "os trabalhadores que hoje têm salários acima da norma terão seus salários congelados e o trabalhador que ingresse na produção passará a um trabalho similar, não com o salário daquele companheiro que tinha adquirido seu direito anteriormente, mas com o novo salário.”

O trabalho voluntário realizado pela juventude, intelectuais comunistas e membros do governo era uma das muitas medidas visando a valorizar o trabalho manual-produtivo e, em certo sentido, a reduzir o fosso existente entre os dois tipos de trabalho – intelectual e manual. Lênin chegou a apregoar essa forma de trabalho logo após a revolução de outubro: os sábados comunistas.

Apesar da presença de certo voluntarismo, uma vontade de pular etapas – na tentativa de redução do espaço de ação da lei do valor –, ele levantou questões essenciais que devem ser enfrentadas logo nos primeiros dias da transição. Em outras palavras, seria preciso realizar, ao lado do desenvolvimento das forças produtivas, uma verdadeira revolucionarização nas relações de produção – eliminando gradualmente as diferenças entre trabalho intelectual e manual, das funções de execução e de mando, reduzindo as desigualdades salariais e no nível de vida entre as diversas camadas de trabalhadores, e entre elas e os membros do aparato estatal. O socialismo não pode reforçar essas assimetrias como ocorreu na experiência soviética.

Talvez sejam essas teses guevaristas, muitas das quais foram e são aplicadas pelo Estado cubano, que nos permitem entender melhor a incrível capacidade de resistência do poder popular em Cuba durante todos estes anos, apesar do cerco imperialista e da débâcle soviética. É preciso aprender com esta experiência, sem tê-la como "modelo ideal” a ser aplicado extemporaneamente e sem ter em conta as particularidades nacionais.

A CONSTRUÇÃO DO HOMEM NOVO

Segundo Guevara, o problema da construção do "homem novo” figurava num lugar de destaque dentro do projeto socialista e deveria ser a principal obra da revolução. O sistema capitalista, no seu processo de produção e de reprodução social, não cria apenas mercadorias e mais-valia, cria também homens incompletos, fragmentados. Sobre este processo escreveu Che: "O exemplar humano, alienado, tem um invisível cordão umbilical que o liga à sociedade (capitalista) em seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, vai modelando seu caminho e seu destino (...). As leis do capitalismo, invisíveis para o comum dos mortais, e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este perceba.”

As particularidades do processo de transição ao socialismo, que pressupõe a permanência do mercado e de suas leis – inclusive a lei do valor – levam a sociedade nova a ainda conviver, por algum tempo, com elementos das ideologias predominantes no capitalismo – a burguesa e pequeno-burguesa. Estas continuam a se reproduzir, ameaçando o futuro da transição, se não forem contidas pela ação firme e consciente do novo poder popular e socialista.

"As taras do passado”, afirmou Che, "se transferem ao presente na consciência individual, e é preciso fazer um trabalho contínuo para erradicá-las (...). A nova sociedade em formação tem que competir muito duramente com o passado (...) pelo próprio caráter deste período de transição com a persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, por conseguinte, na consciência”.

Por esse motivo, Che se colocou contra os métodos de emulação que priorizassem as concessões de estímulos materiais – aumento de cotas de consumo, prêmios de produtividade etc. Segundo ele, a necessidade do aumento rápido da produção levou à "tentação de seguir caminhos trilhados do interesse material”, correndo-se o risco de perseguir o sonho irrealizável de buscar construir o socialismo com a ajuda "das armas defeituosas que nos foram legadas pelo capitalismo”; estas fariam um lento e seguro trabalho de sabotagem sobre o desenvolvimento de uma consciência socialista dos trabalhadores. "Daí”, afirmou ele, "ser importante escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral (...). A sociedade em seu conjunto deve se converter em uma gigantesca escola”.

A persistência da ideologia burguesa, engendrada pelas leis de mercado, levam o trabalhador a considerar natural a vinculação direta entre sua produtividade média e seu acesso ao consumo de mais e melhores mercadorias. "Justamente por isso”, afirmou, "a ação do Partido de Vanguarda consiste em levantar ao máximo a bandeira oposta, a do interesse moral, do estímulo moral, a bandeira dos homens que lutam, se sacrificam, e não esperam nada mais do que o reconhecimento por parte de seu companheiros.”. Continuou: "O estímulo moral, a criação de uma nova consciência socialista é o ponto em que devemos nos apoiar, aonde devemos chegar e ao qual devemos dar ênfase (...). O estímulo material é o resquício do passado com o qual se deve contar, mas cuja importância deve diminuir na consciência das pessoas na medida em que o processo avança (...). O estímulo material não fará parte da nova sociedade que está se criando, deverá se extinguir no caminho”.

Segundo Guevara, o homem no socialismo, "apesar da sua aparente homogeneização, é mais completo (...) e sua possibilidade de se expressar e se fazer sentir no aparato social é infinitamente maior.” O socialismo seria o momento de recuperação da integralidade humana, da construção do homem multidimensional, desalienado. O socialismo plenamente realizado representaria a apropriação, pelos homens, das condições de sua produção e reprodução de sua vida.

Este processo teria início com a implantação do planejamento consciente– e democrático– da produção econômica. Assim, o homem tomaria o seu destino nas próprias mãos. Afirmou ele: "é preciso acentuar sua participação consciente, individual e coletiva, em todos os mecanismos de direção e de produção (...). Assim obterá a consciência total de seu ser social, o que equivale à sua realização plena como criatura humana”. E conclui: "o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria”.

Seguindo uma indicação do jovem Marx, ele constatou que o trabalhador "morre diariamente às oito horas em que atua como mercadoria para ressuscitar em sua criação espiritual”. Contudo, no capitalismo, mesmo o lazer e a produção cultural não passam de tentativas de fuga. "A lei do valor não é mero reflexo das relações de produção”, ela perpassa todas as relações humanas, inclusive fora do trabalho. Na sociedade atual, "a angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvula cômodas para a inquietação humana”. Sendo, portanto, úteis para a reprodução do sistema.

Trabalho desalienado é uma categoria importante para Guevara, seria exclusivamente através dele que poderia ser constituído o homem novo. Por isso, a renovação e valorização do trabalho, especialmente o manual-produtivo, deveriam ser uma tarefa central do poder socialista. Este processo passaria pela redução das desigualdades entre trabalho intelectual e manual, entre funções de comando e funções subordinadas. O trabalho manual não poderia ser a sina dos definidos como menos aptos, como ocorre nas sociedades capitalistas. Nelas, a pecha de trabalho desqualificado é sinônimo de baixos salários e precarização das condições de vida, quando comparadas com formas "superiores” de trabalho – o trabalho intelectual e de dirigente do processo produtivo e estatal. O socialismo deveria fundar também uma nova ética do trabalho.

Referindo-se aos jovens cubanos ele afirmou: "Sua educação é cada vez mais completa, não nos esquecemos de sua integração no trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico em suas férias ou simultaneamente ao estudo. O trabalho é um prêmio em certos casos, um instrumento de educação, em outros, nunca um castigo.” O trabalho manual deveria se livrar do estigma de martírio e castigo que, de certa forma, carregou inclusive nas experiências socialistas – que tinha no deslocamento para trabalhos manuais uma forma de castigo para os opositores ao regime.

A sociedade socialista em construção deveria se livrar também da velha concepção capitalista de que a capacidade de consumo de mercadorias seria a medida de todos os homens. Se o socialismo quiser competir neste terreno estará de antemão derrotado. Não seria possível oferecer um nível de consumo superior ao existente nas sociedades capitalistas avançadas para toda a população, nem em curto e nem em longo prazo. "Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas maravilhas que vêm do exterior possam ser compradas como os salários atuais. Trata-se, precisamente, de que o indivíduo se sinta mais pleno, com mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade”, afirmava ele.

Outra característica do humanismo socialista, defendido por Che, é o internacionalismo. Ser comunista se confundia com ser internacionalista e ter amor pela humanidade. "Permita-me dizer-lhes”, afirmou ele, "com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível se pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade (...). Nosso revolucionário de vanguarda tem que idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas e fazê-lo único, indivisível”.

O militante da causa socialista não deve se contentar apenas em realizar as tarefas locais e se bastar com elas. Mesmo as pequenas vitórias cotidianas podem adormecer o espírito transformador e levá-lo ao acomodamento, e isto é a morte da revolução e da possibilidade da realização plena do socialismo. "Se o afã de revolucionário se debilita quando as tarefas mais prementes se realizam em nível local e se esquece do internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e desaparece numa cômoda modorra, aproveitada por nossos inimigos irreconciliáveis”. Conclui Che: "Não pode existir socialismo se nas consciências não se opera uma mudança que provoque uma nova atitude fraternal diante da humanidade”.

No texto O que deve ser um jovem comunista, Guevara reafirmou suas teses humanistas e internacionalistas: "o que se coloca para todo jovem comunista é ser essencialmente humano, ser tão humano que se aproxime do melhor dos humanos. Purificar o melhor do homem através do trabalho, do estudo, da prática da solidariedade contínua com o povo e com todos os povos do mundo; desenvolver o máximo de sensibilidade, até o ponto de sentir-se angustiado quando em algum canto do mundo um homem é assassinado e até o ponto de sentir-se entusiasmado quando em algum canto do mundo se levanta uma nova bandeira de liberdade”.

Contraditoriamente, a vitória da revolução pode levar à burocratização dos quadros dirigentes do Estado e do Partido, por isso é necessário um constante processo de vigilância e educação ideológico. A burocratização é um instrumento a serviço da contrarrevolução. "Contrarrevolucionário é todo aquele que contraria a moral revolucionária (...) é (também) aquele senhor que, valendo-se de sua influência, consegue uma casa, consegue depois dois carros, viola o racionamento e obtém depois tudo o que o povo não tem (...). Aquele que utiliza suas influências boas ou ruins em proveito pessoal ou dos seus amigos, este é contrarrevolucionário”. Os dirigentes do Partido e do Estado devem ter uma conduta exemplar, este é um fator determinante para se conquistar as massas para a construção do socialismo.

As dificuldades impostas ao processo de construção do "homem novo” são enormes. A sua realização exige vontade férrea e grandes sacrifícios dos dirigentes revolucionários. Não se realizará de uma só vez, conhecerá avanços e recuos. Os métodos serão importantes – por isso é preciso encontrar métodos novos, adequados à nova sociedade socialista que se quer construir. Mas, ela é possível de ser realizada e nela se assentará a possibilidade de realização do sonho socialista – de um homem liberto da exploração, da opressão de toda espécie –, o homem emancipado.

Afirmou Guevara: "Se alguém nos disser que somos quase uns românticos, que somos idealistas inveterados, que estamos pensando em coisas impossíveis e que não se pode conseguir da massa do povo que ela seja quase um arquétipo humano, temos que responder uma e mil vezes que sim, que isso é possível, que estamos no caminho certo, que todo o povo pode avançar, acabar com a mesquinhez humana como está acontecendo em Cuba nestes quatro anos de revolução.”


* Historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.


Fonte:Grabois


BIBLIOGRAFIA

AYERBE, Luiz Fernando. A Revolução Cubana. São Paulo: Unesp, 2004.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
DEL RIO, Eduardo (Rius). Conheça Che Guevara. São Paulo: Proposta.
GUEVARA, Ernesto Che. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo: Edições Populares, 1982.
_______. Cartas. São Paulo: Edições Populares, 1987.
_______.Coleção Grandes Cientistas Sociais/ Política (organizada por Eder Sader). São Paulo: Ática, 1988.
HARNECKER, Marta. Fidel, a estratégia política da vitória. São Paulo: Expressão Popular, 2000.
LOWY, Michael. O pensamento de Che Guevara. São Paulo: Expressão Popular, 2002.


FONTE:  Adital

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