segunda-feira, 20 de abril de 2020

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático [1]



Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação





Por David Sessions, no Dissent| Tradução: Inês Castilho


À medida que o antigo caráter messiânico do marxismo se desvanecia, no final do século XX, muitos se esqueceram de que vagar pelo deserto é muitas vezes a precondição para o surgimento aparecimento de um profeta. Com o colapso do “socialismo real” veio o que parecia ser o triunfo permanente do capitalismo e a destruição lenta, trituradora, de tudo o que resistisse ao avanço do mercado. Mas o renascimento muito inesperado das ideias socialistas no século XXI revela não apenas quanto terreno foi perdido, mas quanta bagagem foi deixada para trás. A presença de um superpoder comunista autoritário não era somente uma prisão ideológica para a política de esquerda fora do bloco oriental, como também uma camisa de força geopolítica: no pico eleitoral dos partidos comunistas europeus, nos anos 1970, a União Soviética nunca guardou segredo de que preferia que o poder no Ocidente fosse ocupado por reacionários.

Agora que essa velha sombra passou e os socialistas estão fazendo uma lenta saída do deserto, eles têm a chance de redefinir-se para um novo século. Isso envolve assumir passos maiores e mais difíceis. Não surpreende que tal esforço tenha mandado os socialistas democráticos contemporâneos de volta aos anos 1970, último momento histórico em que pensadores socialistas desfrutaram da ilusão das possibilidades políticas. Na breve janela anterior à era neoliberal, os socialistas estavam começando a questionar como seria uma política de esquerda que pudesse vencer eleições num sistema democrático. Quem seria sua base? A que tipo de aliança entre classes e grupos identitários ela teria falado? Como agiria em relação a um sistema político “burguês” que os comunistas sempre haviam enxergado como um instrumento irremediável da dominação de classe? Será mesmo possível ser um revolucionário democrático?

Essas questões vêm juntas no trabalho de Nicos Poulantzas, pensador grego que passou a maior parte dos anos 1960 e 1970 em Paris. Lá, Poulantzas argumentou que um entendimento sofisticado do Estado capitalista era fundamental a uma estratégia para o socialismo democrático. Avançando o máximo possível rumo a uma teoria política marxista, ao mesmo tempo em que defendia o papel central da luta de classes, Poulantzas tentou combinar as visões de estratégia revolucionária com uma defesa da democracia parlamentar contra o que chamou de “estatismo autoritário”.

Sinais recentes de um renascimento de Poulantzas, incluindo a reedição de vários de seus livros em francês e inglês, têm muito a ver com o fato de que sua estratégia dual para o socialismo democrático ressoa na tarefa dos socialistas de hoje: entender como usar o Estado capitalista como uma arma estratégica, sem sucumbir a uma longa história de projetos eleitorais falidos e estratégias de realinhamento. As tensões, no pensamento de Poulantzas assemelham-se às tensões atuais dentro da esquerda: retomar o poder é uma questão de expulsar os oligarcas do governo e restaurar uma justiça perdida, ou é necessária uma transformação mais radical do Estado?

O próprio Poulantzas seria capaz de articular uma visão satisfatória para o socialismo democrático? Não se sabe. Mas seu trabalho toca diretamente no coração do problema que o socialismo do século XXI tem de enfrentar.

Em direção a uma teoria estrutural do Estado Capitalista

Nicos Poulantzas nasceu em Atenas em 1936. Em torno dos vinte anos, iniciou uma graduação em Direito na Universidade de Atenas como uma porta dos fundos para a Filosofia. Os textos de Jean-Paul Sartre tornaram-se um canal para o marxismo entre os jovens intelectuais gregos de então. Como Poulantzas explicou mais tarde, era difícil conseguir textos marxistas canônicos originais num país que havia sofrido ocupação nazista, depois guerra civil, depois um governo repressivo anticomunista. Após um breve período de estudos sobre Direito na Alemanha, Poulantzas tratou de ir para Paris, onde logo começou a ensinar direito na Sorbonne e juntou-se aos editores do jornal Les Temps Modernes, de Sartre e Simone de Beauvoir. Projetou-se numa safra de jovens escritores da revista, que publicou seus primeiros escritos sobre Direito e Estado e seu envolvimento com a obra de marxistas britânicos e italianos – entre eles, o princípal teórico do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Sua tese de doutorado de 1964 sobre a filosofia do Direito foi amplamente influenciada pelo existencialismo de Sartre e pelo pensamento de Georg Lukács e Lucien Goldmann, que se harmonizavam com o marxismo hegeliano predominante na França.

Louis Althusser, então um filósofo francês mais marginal mas que logo viria a ser famoso em toda a Europa, discordava dessa volta hegeliana. O seminário de Althusser de 1965, “Lendo o Capital”, foi um evento curioso na história do marxismo que marcou a trajetória intelectual de teóricos bem conhecidos como Étienne Balibar e Jacques Rancière. A moldura e o ordenamento que ele inaugurou da teoria marxista, geralmente descrito como “estruturalismo”, era indissociável da dupla oposição ao economicismo estalinista e o humanismo de pensadores como Sartre. No esquema marxista clássico, a “base” econômica dá origem às “superestruturas” política e ideológica. Em outras palavras, praticamente tudo na sociedade capitalista, de suas instituições políticas a sua cultura, está, em última análise, influenciado pelas leis da economia. Os althusserianos argumentavam que, ao contrário, todos os domínios da sociedade capitalista operam quase independentemente uns dos outros, de modo a reproduzir com mais flexibilidade a dominação capitalista. Claro, eles estão intimamente inter-relacionados, e a economia decide “em última instância” o que terá prioridade. Mas, de acordo com o próprio Althusser, “a hora solitária da ‘última análise’ nunca chega”.

Poulantzas não era um dos principais participantes do seminário “Lendo O Capital”, mas aplicou alguns de seus princípios teóricos ao próprio pensamento sobre Direito e Estado. Como Marx e Engels antes dele, Poulantzas acreditava que o papel fundamental do Estado é defender o poder de classe. Mas o Estado capitalista, argumentava, faz isso de um modo complexo que é obscurecido tanto pela teoria marxista liberal como pela tradicional. O Estado capitalista não é, como imaginam os liberais, meramente uma estrutura política que representa a união dos membros individuais de uma “sociedade civil”. Nem, como no marxismo de base-e-superestrutura, simplesmente uma consequência da dominação econômica do trabalho do capital, uma ferramenta evidente do poder de classe. Ao contrário, ideais liberais – soberania popular, direitos individuais – são o que possibilita ao Estado capitalista agir em favor dos interesses das classes dominantes. Por poder posar de representante do povo, o Estado capitalista é o gestor ideal dos interesses da classe capitalista. Ele pode fazer acordos com as “classes dominadas” necessários para estabelecer a legitimidade da ordem social, enquanto mantém uma distância dos segmentos mais venais e míopes da classe capitalista, cujo instinto natural é perseguir o que Marx chamou de “os mais sórdidos e estreitos interesses privados” sobre o bem-estar das classes dominantes como um todo.

A mudança de ênfase na luta entre capital e trabalho de Poulantzas exigiu dele que repensasse a natureza de “classe” e “luta de classes”. Classes, ele argumentava, nascem na tradicional confrontação “econômica” sobre as condições de trabalho, tempo e salário. Mas são também feitas politicamente, dependendo de como se organizam e exercem pressão no sistema político. Poulantzas argumentava que na verdade a política, na sociedade capitalista, “sobredetermina” – estabelece uma forma de hierarquia complexa e cheia de contradições – outras formas de luta de classes, ao manipular as coisas desde o começo contra as classes dominadas. O mesmo  ordenamento jurídico que possibilita ao Estado capitalista “organizar” os interesses das classes dominantes desorganiza, simultaneamente, as classes dominadas: ele as reconhece, legal e politicamente, apenas como indivíduos isolados, sem reconhecimento da posição econômica em que foram separadas. A separação do político e do econômico feita pelo Estado capitalista isola a luta de classes em fábricas e locais de trabalho, enquanto a verdadeira batalha já foi decidida no próprio funcionamento do sistema político.

Como um trabalho da sociologia marxista militante, seu livro Poder Político e Classes Sociais atuou sobre um terreno que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, crescia com novas teorias liberais que celebravam a ordem do pós-guerra como um tempo de crescente integração social e declínio do conflito de classes. A sociologia liberal tendia a ver o crescimento da burocracia, tanto em firmas privadas como na administração estatal, como um resultado inevitável da complexidade da organização social, uma nova era de sociedade “gerencial” ou “industrial” que era, para alguns, um resultado bem-vindo da competição e conflito do capitalismo de laissez-faire. Muitos, embora por certo não todos, tecnocratas e cientistas sociais assumiram uma visão elitista da sociedade do pós-guerra: o compromisso keynesiano gerou ganhos reais para as massas, enquanto mantinha o poder político seguro nas mãos de especialistas racionais.

Poulantzas não foi a única figura do final dos anos 1960 a sentir que a teoria marxista tinha de avançar para demonstrar o que todo o mundo à esquerda dos social democratas acreditava: que a ortodoxia de centro-esquerda da época era um ofuscamento ilusório da real natureza do novo Estado keynesiano tecnocrático. Em The State in Capitalist Society, publicado poucos meses depois do livro de Poulantzas, o cientista político britânico Ralph Miliband demonstrou empiricamente que a transição de um Estado liberal mais limitado ao Estado empresarial, intervencionista, nada fez que ameaçasse a consolidação do poder da classe dominante. Em muitos casos, ele argumentava, não era sequer verdade que as grandes corporações se mantivessem distantes do Estado. Na verdade, elas tinham uma presença direta e constante nos gabinetes executivos e nos aparatos de governança e planejamento econômico. Influenciado pelo sociólogo norte-americano Wright Mills, que tentou diagnosticar a estreita interligação das classes dominantes norte-americanas em A Elite do Poder (The Power Elite, 1956), Miliband reuniu um conjunto de evidências de que diferentes tipos de elites compartilham origem social, bagagem cultural, trajetórias educacionais e mentalidades, e que as exceções foram sutilmente doutrinadas para conformar-se às regras. Não importa o seu acordo com as classes trabalhadoras, o Estado capitalista ainda era o instrumento das classes dominantes.

A abordagem de Miliband do Estado capitalista tem certas afinidades com a visão comunista que era outro alvo primordial de Poulantzas. Para ele, essa percepção via equivocadamente o Estado como uma infra-estrutura neutra, que era corrompida por quem tinha poder sobre ela. Ao contrário, ele argumentou, não faz diferença alguma quem está no comando – porque o Estado capitalista já é uma máquina altamente calibrada para a produção da dominação de classe. Essa era uma questão teórica com grandes consequências estratégicas, argumentou Poulantzas: se a esquerda imaginou que o Estado poderia ter ficado intacto e ser manobrado em direção ao socialismo, precisava despertar. “Lenin disse que era necessário conquistar o poder do Estado esmagando a máquina estatal”, declarou ele, “e não preciso dizer mais nada”.



[Continua]

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