segunda-feira, 13 de abril de 2020

Textos Escolhidos I : Kautsky



A Conquista do Poder Político

Karl Kautsky

(1909)


Amigos e inimigos do Partido Socialista coincidem em reconhecê-lo como um partido revolucionário. Porém, desgraçadamente, o conceito de revolução admite numerosas interpretações, o que divide bastante as opiniões sobre o seu caráter revolucionário. Um número muito grande de adversários não quer entender por revolução mais que anarquia, efusão de sangue, pilhagem, incêndio, assassinato; e, por outra parte, há camaradas para quem a revolução social para a qual marchamos não parece ser mais que uma transformação lenta, uma transformação parecida à que a máquina a vapor produziu.

O certo é que o Partido Socialista, uma vez que luta pelos interesses de classe do proletariado, é um partido revolucionário.

É impossível, com efeito, na sociedade capitalista, assegurar ao proletariado uma existência satisfatória, pois sua emancipação exige a transformação da propriedade privada dos meios de produção e de dominação capitalista em propriedade social, assim como a substituição da propriedade privada pela produção social. O proletariado não pode encontrar satisfação senão em uma ordem social completamente diferente da de hoje.

Porém, o Partido Socialista é também revolucionário em outra acepção, pois reconhece que o Estado é um instrumento, ainda um instrumento mais formidável da dominação de classe e que a revolução social para a qual tendem os esforços do proletariado não poderá cumprir-se até que se conquiste o poder político.

Esta concepção formulada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista é a que distingue os socialistas modernos dos chamados utopistas, por exemplo, dos partidários de Owen e Fourier na primeira metade do século XIX, assim como dos de Proudhon, que às vezes concediam pouca importância à luta política e às vezes até a rechaçavam e acreditavam poder realizar a transformação econômica no interesse do proletariado com medidas puramente econômicas, sem modificações do poder político e sem sua intervenção.

Enquanto mostrou a necessidade da conquista dos poderes públicos, Marx e Engels aproximaram-se de Blanqui; este último, Marx e Engels, ao contrário, reconheceram que uma revolução não ocorre arbitrariamente, mas sim, de acordo com as necessidades históricas, sendo impossível enquanto determinadas condições que se elaboram pouco a pouco, não se reúnem. Só aí, quando o sistema de produção capitalista alcançou alto grau de desenvolvimento, as condições econômicas permitem a transformação, pelo poder político, da propriedade capitalista dos meios de produção em propriedade social; porém, por outro lado, o proletariado não está em condições de conquistar o poder político e de conservá-lo a não ser onde tenha chegado a constituir uma massa poderosa, indispensável à economia do país, em grande parte solidamente organizada, consciente de sua posição de classe e instruída sobre a natureza do Estado e da sociedade.

Essas condições, no entanto, só se alcançam dia a dia, em conseqüência do desenvolvimento do sistema de produção capitalista e das lutas de classes que daí resultam entre o capital e o trabalho; tão inevitável, tão irresistível como o desenvolvimento incessante do capitalismo, é também a reação final contra esse desenvolvimento, isto é, a revolução proletária. É irresistível porque é inevitável que o proletariado, fortalecido, ponha-se em guarda contra a exploração capitalista, organize-se em seus sindicatos, cooperativas e grupos políticos, que procure conquistar melhores condições de trabalho e de existência, e uma influência mais considerável. Em todas as partes o proletariado, socialista ou não, exerce essas diferentes formas de atividade. Compete ao Partido Socialista combinar todos esses diversos modos de ação, pelos quais o proletariado resiste contra a exploração capitalista, com uma ação sistemática, consciente do objetivo a conquistar e culminando nas grandes lutas finais pela conquista do poder político.

Em princípio, essa é a concepção exposta pelo Manifesto do Partido Comunista e hoje reconhecida pelos socialistas de todos os países. Sobre ela repousa o socialismo internacional de nossa época. No entanto, não tem podido celebrar seu triunfo sem enfrentar a dúvida e a crítica nas próprias fileiras do Partido Socialista.

Certamente, a evolução real cumpriu-se na direção prevista por Marx e Engels. Depois dos progressos do capitalismo e como conseqüência da luta de classe proletária, é sobretudo a compreensão profunda das condições e do objetivo desta luta – conforme as investigações de Marx e Engels – o que assegura a marcha vitoriosa do socialismo internacional.

Em um ponto somente se equivocaram: viram a revolução num futuro demasiadamente próximo.

Lê-se, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista (fins de 1847) :

"As vistas dos comunistas convergem com especial interesse para a Alemanha, pois não desconhecem que este país está em vésperas de uma revolução burguesa e que essa sacudida revolucionária vai-se desenvolver sob as propícias condições da civilização européia e com um proletariado muito mais poderoso que o da Inglaterra no século XVII e o da França em XVIII, razões todas para que a revolução alemã burguesa, que se avizinha, não seja mais do que prelúdio imediato de uma revolução proletária".

Com razão os autores do Manifesto Comunista esperavam uma revolução na Alemanha, mas se equivocaram ao crer que seria imediatamente seguida de uma revolução proletária. Em época mais recente, 1895, encontramos outra predição de Engels na introdução que escreveu para a segunda edição do folheto de Marx sobre o processo dos comunistas de Colônia. Lê-se, ali, que a próxima comoção européias

"ocorrerá logo, pois o prazo das revoluções européias – 1815, 1830, 1848, 1852, 1870 – dura em nosso século de quinze a vinte anos".

Esta esperança tampouco se realizou, e a revolução com a qual então se contava ainda hoje se faz esperar.

De onde provém isso? Por acaso o método marxista, no qual se fundava sua esperança, é falso? De nenhum modo. É que no cálculo um fator não era exato. Faz dez anos escrevi a este respeito :

"Em ambos os casos, contou-se demasiado com a força revolucionária, com a oposição da burguesia".

Em 1847, Marx e Engels previram para a Alemanha uma revolução de alcance extraordinário, parecida com a grande catástrofe que começou na França em 1789. Em lugar disso não se viu mais do que um levante mesquinho, que fez em seguida quase toda a burguesia encolher-se assustada sob a proteção dos governos, de sorte que estes se fortaleceram, enquanto que todas as probabilidades de um rápido desenvolvimento estavam perdidas para o proletariado. A burguesia abandonou em seguida aos diferentes governos a tarefa de continuar para ela a revolução enquanto fosse necessária, e Bismarck, especialmente, foi o grande revolucionário que, em parte ao menos, unificou a Alemanha, derrubou príncipes alemães de seus tronos, favoreceu a unidade italiana e o destronamento do Papa, derrubou o império na França e abriu o caminho à república.

Assim se cumpriu a revolução burguesa alemã que Marx e Engels profetizaram, em 1847, como próxima, e que não terminou até 1870.

No entanto, Engels esperava, além disso, uma "comoção política" em 1885, e supunha que "a pequena burguesia democrática era ainda em nossos dias o partido" que, em tal circunstância, "devia necessariamente ser o primeiro a chegar ao poder na Alemanha".

Também desta vez Engels havia observado com justeza ao profetizar a aproximação de "uma comoção política"; contudo, novamente, se enganou em seus cálculos ao revelar alguma esperança na pequena burguesia democrática. Esta falhou completamente quando se produziu o súbito transtorno do regime de Bismarck. A queda do chanceler reduziu-se às proporções de uma questão dinástica, sem a menor conseqüência revolucionária.

Vê-se cada vez mais claramente que uma revolução não é daqui, e que esta é impossível se o proletariado não é uma força bastante considerável e composta para poder arrastar com ela, em circunstâncias favoráveis, a maior parte da nação. Logo, se o proletariado é daqui por diante a única força revolucionária da nação, deduz-se, por outra parte, que cada alteração do regime atual, seja de natureza moral, financeira ou militar, implica na bancarrota de todos os partidos burgueses, e que unicamente um regime proletário é capaz, em semelhante caso, de substituir o atual.

Apesar disso nem todos os nossos camaradas chegam a esta conclusão. Se a revolução, tantas vezes esperada, não sobreveio, de nenhum modo deduzem disso que, em conseqüência da evolução econômica, a revolução futura estará sujeita a outras condições e se revestirá de formas distintas das que se inferiram da experiência das revoluções burguesas; estabelecem muito bem que em condições novas, em que não encontramos hoje nenhum motivo para esperar uma revolução, que não só esta é desnecessária, mas que até seria prejudicial. Supõem-se, por outra parte, que basta continuar a edificação das instituições já conquistadas — legislação operária, sindicatos, cooperativas — para desalojar sucessivamente a classe capitalista de todas as suas posições e expropriá-la, sem traumas, sem revolução política, sem transformação essencial do Estado. Esta teoria de uma evolução pacífica e gradual até a sociedade futura é uma modernização das velhas concepções anti-políticas do utopismo e do proudhonismo. Além do mais, considera-se possível que o proletariado chegue ao poder sem revolução, isto é, sem o sensível deslocamento das forças do Estado, simplesmente por uma colaboração hábil com os partidos burgueses mais chegados, compondo com eles um governo de coalização que não poderia ser formado, isoladamente, por nenhum dos partidos integrantes.

Deste modo evitar-se-ia, bordejando, por assim dizer, a revolução, procedimento antiquado e bárbaro que já não é corrente em nosso século ilustrado da democracia, da ética e da filantropia.

Se essas concepções se tivessem imposto anulariam completamente a tática socialista tal como Marx e Engels as estabeleceram. São, com efeito, inconciliáveis com esta tática. Naturalmente, isto não é uma razão para supô-las falsas, de imediato; é compreensível, porém, que, se alguém, depois de examiná-las profundamente, as considera falsas, combata-as ardentemente, pois não se trata neste caso de opiniões sem conseqüências, mas a salvação ou a derrota do proletariado militante.

Ademais, na discussão destes pontos litigiosos é fácil equivocar-se se não se tem o cuidado de delimitar claramente o objetivo da controvérsia. Por isso, como o temos feito com freqüência em outras oportunidades, insistimos outra vez sobre o fato de que não se trata de saber se as leis de proteção operária e outras medidas tomadas no interesse do proletariado, se os sindicatos ou as cooperativas são ou não necessárias e úteis. Sobre este ponto somos todos do mesmo parecer. Só negamos uma coisa: que as classes exploradoras, que dispõem do poder político, possam permitir que esses elementos adquiram um desenvolvimento equivalente a uma libertação do jugo capitalista sem opor com todas as suas forças uma resistência que não será quebrada senão por uma batalha decisiva.

Tampouco trata-se de saber se devemos utilizar em benefício do proletariado os conflitos que ocorrem entre os partidos burgueses. Não sem razão Marx e Engels combateram sempre a expressão "massa reacionária"; ela mascara demasiado os antagonismos existentes entre as diversas facções das classes possuidoras, antagonismos que foram às vezes de grande importância para os avanços do proletariado. Com freqüência o proletariado deve a tais antagonismos as leis de proteção operária, assim como a extensão dos direitos políticos.

O que negamos é apenas a possibilidade de um partido operário formar, em tempo normal, com os partidos burgueses, um governo ou um partido de governo, sem cair, por isso, em contradições insuperáveis que o farão, sem dúvida, fracassar. Em todas as partes o poder político é um órgão de dominação de classe; o antagonismo entre o proletariado e as classes possuidoras é tão formidável que jamais o proletariado poderá exercer o poder conjuntamente com uma dessas classes. A classe possuidora exigirá sempre e necessariamente, em seu próprio interesse, que o poder político continue reprimindo o proletariado. O proletariado, ao contrário, exigirá sempre de um governo em que seu próprio partido está representado que os órgãos do Estado o assistam em suas lutas contra o capital. Isto é o que deve levar ao fracasso qualquer governo de coalização entre o o partido proletariado e partidos burgueses. Um partido proletário em um governo de coalizão burguesa, far-se-á sempre cúmplice dos atos de repressão dirigidos contra a classe operária; atrairá para si o desprezo do proletariado, enquanto que a sujeição resultante da desconfiança de seus colegas burgueses o impedirá sempre de exercer uma atividade frutífera. Nenhum regime semelhante pode aumentar as forças do proletariado - ao que não se prestaria nenhum partido burguês — e só pode comprometer o partido proletário, confundir e dividir a classe operária.

Vemos, portanto, que o fator que desde 1848 tem postergado sempre a revolução, isto é, a decadência política da democracia burguesa, exclui agora, mais do que nunca, colaboração positiva com ela tendo em vista obter e exercer em comum o poder político. Por mais convencidos de que tenham estado Marx e Engels da necessidade de utilizar em benefício do proletariado os conflitos entre partidos burgueses e hajam posto algum ardor em combater a expressão "massa reacionária", não é menos certo que criaram o termo "ditadura do proletariado", pela qual Engels lutava, todavia, em 1891, pouco tempo antes de sua morte, expressão da hegemonia política exclusiva do proletariado como única forma sob a qual este pode exercer o poder.

Pois se de um lado um bloco proletário-burguês não pode ser um meio de aumentar as forças da classe operária; se, de outra parte, o progresso das reformas econômicas e sociais e das organizações econômicas do proletariado permanece sempre limitado, enquanto nada mudou as forças respectivas das classes existentes, tampouco há razão alguma para concluir, pelo fato de que a revelação política não chegou ainda, que não houve semelhantes revoluções senão no passado, e que no futuro elas não ocorrerão.

Outros duvidam da revolução, sem expressar-se, no entanto, de maneira tão peremptória. Admitem a possibilidade da revolução, porém, se deve chegar, só pode ser, crêem, num futuro bem distante. Segundo pensam, pelo menos no espaço de uma geração a revolução seria completamente impossível, e não poderia ser tomada em consideração para nossa política prática. Por algumas dezenas de anos deveríamos acomodar-nos à tática da evolução pacífica e do bloco proletário-burguês.

Neste momento, todavia, estamos justamente diante de certos fatos que devem induzir-nos mais do que nunca à falsidade dessa opinião.


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